Precisamos do DSM-5?
Depois de termos percorrido toda uma tradição em Psiquiatria,
de Pinel ao séc. XXI – tradição que
lidou com sujeitos humanos com
sentimento de si e singularidades significativas, existindo em reações, estresses, processos psicóticos, neuroses e
perversões - chegamos em 2013 ao admirável mundo da psiquiatria sem sujeito, do
Manual Estatístico e Diagnóstico, versão 5.
O DSM-5
insere-se na moderna Psiquiatria do cérebro-mente - que se pretende ateórica a
respeito da mente, estatístico-científica, cognitivo-comportamental - enquanto nosografia descritiva que
prescindiria de uma teoria do psiquismo ou de um sujeito humano e corporal a
ser ouvido e visto em quanto tal.
Questiona-se todavia se esta Psiquiatria efetivamente ajuda no
sofrimento dos pacientes, se ela poderia potencializar o melhor das antigas
práticas de bases humanistas e filosóficas que prevaleceram até os anos 70-80 (fenomenologia,
psicopatologia, psicanálise, existencialismo, além das abordagens corporais e
psicossomáticas).
O
desafio ao psiquiatra atual é a meu ver mesclar o legado obtido desde o Iluminismo,
aonde nasce a Psiquiatria enquanto parte da Medicina (de base filosófica e
empírica), até o melhor que se possa destilar do modelo atual cérebro-mente (de
base neurocientífica).
Para
tal desafio, contamos hoje com a poderosa e inédita potencialidade do aparato
técnico e farmacológico do séc. XXI, disponível para diagnóstico e tratamento (p.
ex. ressonâncias, PET-scans, estimuladores magnéticos, neurolépticos e antidepressivos
modernos). Tal aparato não teria sua efetividade potencializada, se inserido
numa compreensão humanista e corporal do sujeito que vai sendo desprezada na
Psiquiatria no estilo DSM?
DSM ou CID?
Carlos Rey, depondo a Sara Hassan sobre
o manifesto StopDSM (ver em stopdsm.blogspot.com) do qual é signatário, inicia
dizendo que a idéia principal é
“manifestar a nossa discordância com que o DSM seja o único critério de
diagnose clínica: Denunciamos que, oficialmente, é necessário recorrer a uma classificação
que nem é como se supõe, científica, mas política” (Rey & Hassan 2012: 2).
Penso
que algum Código Internacional de Doenças é necessário, uma versão muito aperfeiçoada
do atual CID-10 ou 11 (editados pela Organização Mundial da Saúde, OMS). “Classificação
política”, sim, mas de políticas de saúde pública. Necessária à pesquisa
clínica, sobretudo em psicofarmacologia, aos sistemas de financiamento e gestão
da saúde e à comunicação internacional.
Um “CID
futuro” ideal, gerado através de amplo debate transcultural, por exemplo sob os
auspícios da OMS forte, deveria transcender as limitações do DSM e superá-lo no
uso corrente mundo afora, influenciando as políticas de saúde pública e enfim visando
o melhor atendimento ao maior numero possível.
Um CID
futuro ideal poderia também ser tributário de um debate wikipédico entre os
pesquisadores de sua força-tarefa mundial e a diversidade mundial dos clínicos
da saúde mental. Citaria e traria correspondências com outras pesquisas, nosologias,
escalas de sintomas, DSMs locais, com descrições do sofrer mental provenientes de
línguas e culturas diversas, inclusive não ocidentais, buscando aliviar ou
tratar os sofreres que, enfim, temos todos em comum.
Podemos
assim sonhar com o CID futuro, que além de seu braço classificatório, possa também
documentar as bibliotecas abertas de diálogos com as psicopatologias e
nosologias contemporâneas, fenomenológicas, existenciais, psicanalíticas,
psicodinâmicas, bioenergéticas, para não falar de medicinas chinesas ou indianas
ou de mesmo de culturas que mal temos conhecimento, numa grande síntese antropo-psicopatológica
em evolução, que assuma a necessária teorização subjacente às nosografias,
convergindo todavia para um consenso classificatório final, ainda que sempre provisório,
em forma de código internacional.
Mondo
DSM...
Já o
DSM-5, com seus “transtornos” multiplicando-se por métodos lobistas através de seus
pesquisadores opacos (mas com acesso às publicações indexadas e aos
financiamentos), mostra o pior do atual provincianismo americano, dos
interesses mercantis, das escolinhas comportamentais toscas, dos vieses de uma
míope pretensão a um só modo de viver a ciência e a clínica.
Estamos
no mondo dos grandes congressos de
psiquiatria, de siglas como APA, FDA, da exclusividade terapêutica atribuída a
terapias cognitivo-comportamentais, com o pano de fundo do modelo “científico” e
supostamente unificado da disfunção cerebral omnicausal e com localizações
cerebrais já quase elucidadas.
Neste mondo, o Manual Estatístico e
Diagnóstico americano, prestes a chegar à sua versão 5, já se tornou uma respeitável
criatura intelectual de cabelos grisalhos, com projeção mundial sobretudo em
farmacologia clínica; orgulhosamente gerada em alguns dos 50 estados
americanos, mas de pretensão universal. Realidade: muito da pesquisa global em
Psiquiatria norteia-se pelas categorias diagnósticas do DSM-4.
Se em
1952, com o DSM-II, a Psicanálise se fazia saliente em termos tais como histeria ou neurose e em conceitos-chave
tais como conflito intra-psíquico, hoje toda referência desapareceu. Duramente
criticado nos anos 60-70, o DSM-II “representaria a realização institucional
referendada pelo Estado e articulada aos seus dispositivos educacionais,
jurídicos e de pesquisa para repressão política” (Dunker & Neto, 2011:
614). De fato: além do elo histeria-feminilidade combatido pelas feministas, somente
em 1974 a homossexualidade deixou enfim de ser uma patologia catalogada, após
muitos protestos.
Em 1980
surge o DSM-III, que pode ser considerado o momento de virada na Psiquiatria; cansada
das querelas das ciências humanas e dos debates políticos, ela mudou
completamente: ela é agora biológica, neurocientífica, supostamente já sem
teorias psíquicas ou sócio-culturais subjacentes, acreditando enfim dispor, de
uma vez por todas, de um “sistema de diagnóstico preciso do ponto de vista
descritivo-terminológico e passível de servir de apoio para pesquisa
empírico-experimental” (Dunker & Neto, 2011: 616).
Nos
dias de hoje, nos corredores dos laboratórios farmacêuticos e universitários, os psiquiatras que
são a força-tarefa do DSM-5 caminham ombro a ombro com estatísticos,
estagiários, zootecnistas de modelos animais, lobistas, ghost-writers, gente de eventos e financiadores, corredores onde
Freud ou Jaspers já são ilustres desconhecidos.
Como parte
de um credo único que agora despreza o passado, o DSM chega aos ambulatórios e
consultórios modernos na forma de transtornos
agora catalogáveis e recriáveis a
partir de prontuários, alimentados por questionários estandardizados e tabuláveis
em pontos e escalas. Como que por coincidência, os psiquiatras americanos ficam
assim resguardados dos processos de má-prática típicos do país, graças à
documentação e a “evidência” que é gerada neste estilo de clínica.
Fechando
o círculo, o enorme marketing da brain-pharma
assegura o contato dos clínicos com os novos produtos, que geram prescrições de
medicamentos caros com vieses óbvios contra
o bem estar do paciente, que passou agora a ser bipolar ou hiperativo... quinze
vezes mais que em 1980? Ou ser portador de novos transtornos de impulsos ou
tiques recém-elencados, além de múltiplas “co-morbidades”? Muitas mais pessoas
precisam de muitos mais tratamentos...
Anedota
ou não, a julgar pela leitura feita por auditores das proposições do Comitê
para a Proposição de Novos Transtornos do DSM-5, boa parte da população teria um
novo diagnóstico DSM-5, de transtorno hiper-sexual se pensasse ou fizesse sexo algo
como mais de 6 horas por semana, e hipo-sexual com menos de uma hora por
quinzena.
Tanto
quanto os críticos do óbvio conflito de interesses nas pesquisas de
psicofarmacologia clínica patrocinados
pela indústria farmacêutica, o movimento StopDSM tem plena razão em criticar o mal uso, uso reificado e/ou perverso
da Estatística e enfatizar a dimensão verdadeiramente clínica do diagnóstico em Psiquiatria, que diz respeito à singularidade
de um sujeito humano. O que quer dizer afinal ser portador de transtorno hipo
ou hiperssexual? Seria pertinente iniciar imediatamente Viagra ou Broxol XR?
CID futuro ideal
Apesar
da hegemonia atual desta psiquiatria no estilo DSM-5 e seu entorno neo-liberal
em crise, acredito que precisamos de um Código Internacional de Doenças (CID)
futuro. Contra Carlos Rey, mas sem desqualificar práticas clínicas da
singularidade, como a psicanálise ou análise existencial, acredito que também necessitamos
de critérios estatísticos, epidemiológicos e um estilo científico de pesquisar
que não pode prescindir, ao menos na dimensão da saúde pública, de uma
necessária unificação descritiva e de uniformização de nomenclaturas, tais como
as de um CID ou DSM.
Mesmo como
instrumento de um aspecto pouco relevante da clínica de sujeitos singulares num
vínculo médico-paciente, aquele da relação do profissional com sistemas de
saúde públicos ou privados, ter um código internacional para relatar cada
atendimento tornou-se realidade incontornável no modelo de assistência praticado
no mundo ocidental.
Já a
indicação de medicamentos psiquiátricos, ainda que limitada pela prática atual
de tratamento de sintomas ou síndromes - como benzodiazepínicos para sintomas
ansiosos ou antidepressivos para síndromes depressivas - deveria ser idealmente
norteada por uma psicopatologia respondendo por categorias nosográficas mais cada
vez mais precisas, consensuais, uniformes e delimitadas, tais como as de um CID
futuro.
Todavia,
hoje muitas indicações farmacoterápicas já são feitas em função de diagnósticos
DSM-IV questionáveis que a meu ver não beneficiam o paciente, sancionando por
exemplo a hiperinflação de bipolaridades tratadas com anticonvulsivantes ou
hiperatividades tratadas com anfetaminas caras.
Não
obstante, toda a pesquisa clínica com psicofármacos depende de uma nosografia
estabelecida, por exemplo para se comparar diferentes fármacos em função de sua indicação para categorias diagnósticas
claramente delimitadas (p. ex. lítio e anticonvulsivantes no leque clínico das
bipolaridades do humor), bem como para comparar o espectro de ações de um
fármaco em diferentes categorias diagnósticas (p. ex. espectro de ação de
antidepressivos e neurolépticos atípicos).
Assim,
questiona-se também se o recorte de efetividade de certos fármacos não possa
delimitar grandes categorias sindrômicas e diagnósticas (p. ex., determinados perfis
clínicos ansiosos e depressivos altamente responsivos a tais ou tais
antidepressivos, que possivelmente partilham circuitarias neuronais e
neurotransmissores em comum).
.Também
a pesquisa das bases neurocientíficas da Psiquiatria depende de uma boa
nosografia, com o estabelecimento de correlações entre alterações microanatômicas-funcionais,
respostas farmacológicas e alterações psíquicas específicas.
Até
mesmo a delicada pesquisa de eficácia de psicoterapias depende de como
entendemos e nomeamos, ao longo do tempo, o que é o sofrer e o fruir humanos.
Mas para definir “eficácia” de uma psicoterapia precisamos além das nosografias, recorrer à
psicopatologia e mesmo à filosofia, notáveis ausentes na formação do psiquiatra
atual no modelo DSM. Que critérios estatísticos definiriam o que é afinal uma
psicoterapia eficaz?
Diagnóstico e prognose além do CID
Sara
Hassan, lendo meus argumentos sobre a necessidade de um sistema nosográfico e
classificatório, comentou que mesmo dispondo-se de um CID ideal existe o risco
de hipertrofia deste modelo diagnóstico classificatório, segregando ou diluindo
outros enfoques, tais como a psicanálise.
Do meu
lado, refleti que tal comentário entra em sintonia com a tese que emergiu a
partir da minha reflexão sobre o DSM-5, a saber, que paralelamente a um
diagnóstico ao estilo CID se possam formular diagnósticos da singularidade, evolutivos, dependentes de observação e
elaboração concomitantes e continuadas, no seio de um vínculo, como é proposto
pela psicanálise e pelas psicoterapias que contemplam um sujeito singular.
No
contexto de um atendimento psiquiátrico mínimo, envolvendo apenas
farmacoterapia e pouco tempo junto ao paciente - como é regra na saúde gerenciada,
pública ou privada - diagnósticos da singularidade nem sempre são factíveis e o
tratamento consiste apenas no seguimento de um protocolo que tem como premissa um
código CID. Mesmo diagnósticos do eixo II do sistema DSM (de personalidade), ou
do eixo IV (contextos psicossociais), não tem como ser realizados com rigor
quando o atendimento é mínimo, em tempo e em vinculação terapêutica.
Em
condições mais favoráveis de tratamento, quando se pode efetivamente estabelecer
um vínculo terapêutico e dialogar com o paciente ao longo de muitas sessões, diagnósticos
da singularidade são possíveis e desejáveis, implicando em tratamentos mais
efetivos.
Isto é
o que busco na minha clínica, que conjuga farmacoterapia, orientações sobre modus vivendi adequados e psicoterapia.
Além de um diagnóstico psiquiátrico convencional, como os códigos CID, procuro
estabelecer diagnósticos da singularidade do paciente, que particularizam e
assim dão maior eficácia às medidas de tratamento, farmacológicas,
psicoterápicas, além da ênfase às orientações gerais para promoção da saúde.
Estes
diagnósticos da singularidade - psicodinâmicos, do grau de resiliência, da capacidade
de enfrentamento (coping) e do bom funcionamento egóico, da estrutura e
funcionamento cognitivo, emocional, familiar e vincular, do sistema de crenças
sócio-culturais, dos sentidos dados à própria existência presente e passada – são
de certo modo semelhantes aos critérios diagnósticos “clínicos” descrito por Carlos
Rey no contexto psicanalítico:
“Clínica é a observação, estudo, análise
do paciente, da sua história e do seu relato (...) como tem vivido sua vida,
(...) sua experiência”. Obtém-se assim junto e com o paciente um saber clínico, um prognose, “...fruto da
transferência, do trabalho conjunto, da elaboração do paciente, da escuta do
profissional” (Rey & Hassan 2012:4).
Todavia,
os critérios “clínicos” de Rey tem a especificidade da clínica psicanalítica,
enquanto meu conceito de diagnósticos da singularidade tem outro foco, mais
egóico e que se faz no vínculo médico-paciente e psicoterápico, abarcando dimensões
que incluem diagnósticos médicos gerais, da história e cultura familiar, sócio-culturais,
da personalidade, dos recursos lógicos, emocionais e atitudinais e das capacidades
de mudança e insight.
Não
obstante, o diagnóstico amplo que proponho abarca e coincide - no benefício do
paciente que teria assim melhor tratamento – com a posição de Rey: “nós, os
psicanalistas, reivindicamos a subjetividade e portanto a diversidade de
maneira de ser e de estar no mundo, de sentir, de pensar, definitivamente de
viver, curtir e sofrer” (Rey & Hassan 2012:3).
A busca
de uma compreensão do paciente em sua singularidade visa enfim ter por
conseqüência em uma conduta médica
ideal, isto é para a proposição de um mix
de medidas e regimes de tratamento adequados àquele paciente singular, no antigo espírito da medicina
hipocrática; “a ação curativa dependerá de um triplo ‘que’, que doença, que doente, que remédio”
(Carvalho 2004: 58).
Ressonâncias com o Manifesto de Barcelona e
M. Foucault
Assim como
os signatários do Manifesto de Barcelona, documento-referência do movimento “StopDSM
- como critério único de diagnose clínica” (veja em stopdsm.blogspot.com.br),
também sou contra as “certezas clínicas” dadas por “gestores e investidores dos
sistemas de saúde”, que começam com a razoável idéia de mínima normatividade necessária,
mas logo se tornam certezas cínicas, verdade única, modelo coercitivo onde
“tudo é para o paciente, sem o paciente”. Seria porque um “saber sem sujeito é
desde logo um poder sobre o sujeito”?
(Manifesto de Barcelona, 2011).
Reencontramos
assim no DSM-5, sob o disfarce de cientificismo ideologicamente neutro, o
biopoder postulado por M. Foucault em versão contemporânea, o mesmo biopoder exercido
desde fins do séc. XVIII sobre os “processos biológicos ou bio-sociológicos das
massas humanas”.
Reencontramos o biopoder potencial da Medicina,
“saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população, sobre
o organismo e sobre os processos biológicos e que vai, portanto, ter efeitos
disciplinares e efeitos regulamentadores” (Foucault 2005: 302).
Assim,
se precisamos minimamente de códigos de doenças e protocolos diretivos de
tratamento, que saibamos como e a quem atendem e a quem deveriam atender, pois tanto
como os proponentes do Manifesto de Barcelona, “não consideramos que as
classificações e tratamentos possam ser neutros em relação às teorias etiológicas
e ao mesmo tempo ser neutros a respeito das ideologias de controle social e de
interesses que não são clínicos”.
Ora, desde
Hipócrates, o interesse central do praticante da clínica é o paciente. Daí a meu
ver a discordância de tantos profissionais da saúde mental com o DSM enquanto
“critério único de diagnose” e a insistência na pluralidade dos diagnósticos
clínicos em psiquiatria, na preservação da tradição da psicopatologia e da
ética médica.
Ressonâncias com o
manifesto de Buenos Aires
O
Manifesto de Buenos Aires originou-se de debates em torno da patologização da
infância e da juventude, em 2011. Significativamente, este outro manifesto-referência
do movimento StopDSM enfatiza os riscos do etiquetamento precoce e das estigmatizações
potenciais conseqüentes a diagnósticos no estilo DSM, correlata à ausência de
compreensão de um jovem singular em sofrimento psíquico, nos seus contextos
vinculares, familiares e sociais.
Citando
este manifesto (ver em “stopdsm.blogspot.com.br”), enfatizo que: “um Manual
como o DSM (...) que não leva em conta a história, nem os fatores
desencadeantes ou o que subjaz a um comportamento, obtura as possibilidades de
pensar e de se interrogar sobre o que ocorre a um ser humano”.
Com
isto “se solapam as determinações intra- e intersubjetivas do sofrimento
psíquico” e, como novamente observamos, se compromete “a realização de um tratamento adequado a cada paciente”
(grifo meu).
No
mesmo golpe, acrescentaria ainda, se pode penalizar com um conjunto de
transtornos-rótulos quase todo o jovem que em algum momento evolutivo
apresentar um comportamento que se julga destoar da norma disciplinar; temos aí
um biopoder de enorme potencial autoritário.
Ressonâncias com o Manifesto de S. João del
Rey
Neste
manifesto conjunto de instituições universitárias brasileiras (ver
stopdsm.blogspot.com.br), faz-se uma detida crítica do DSM-5 a partir de sua fundamentação
epistemológica frouxa e de seus vieses políticos, econômicos e doutrinários, que
culminam simultaneamente no alijamento de toda a tradição em psicopatologia e na
“patologização da existência”, como também assinalado nos manifestos de
Barcelona e Buenos Aires.
Cito: “Os
promotores dos DSM’s confundem quantificação (estatística) com inteligibilidade
científica”; isto a ponto de, como lemos no manifesto, um psiquiatra americano
ter em 1984 decretado, ao estilo de F. Fukuyama, o fim da história da Psiquiatria,
pois o DSM “teria vencido a batalha científica em relação aos outros sistemas e
teorias diagnósticas e psiquiátricas”.
A
“vitória” nesta batalha pode todavia não representar (alívio...) o fim da
história da Psicopatologia, agora feita tabula
rasa, mas é infeliz e patente que a hegemonia da visão de mundo DSM “acaba
por impedir que se faça uma discussão séria sobre o que é o normal e o
patológico”.
Se esta
vitória é ou não de uma aliança entre os partidários da etiologia puramente biológica,
os interesses mercantis e um dissimulado biopoder que se apodera do sofrimento
psíquico, o resultado é um manual que cataloga fenômenos psíquicos “sem preocupação em saber como surgem,
porque surgem, como se articulam entre si e, principalmente que função podem
desempenhar para determinado sujeito”.
Inúmeras conseqüências derivam disto.
Reitero apenas que a pretensão a uma Psiquiatria sem referência a um “sujeito e
sua singularidade sintomática” só pode resultar em tratamentos piores aos pacientes reais, com seu foco
em abolir sintomas inventariados, que seriam expressões de meras disfunções
cerebrais e não de complexas formações simbólicas no contexto de uma existência
humana.
Enquanto isto na América...
Nos
EUA, exceto por grupos minoritários, sobretudo de psicólogos (ver p. ex. http://www.ipetitions.com/petition/dsm5)
e críticos culturais ao estilo europeu, o tom médio das discussões sobre o DSM-5
não é de questionamento às fundações epistemológicas, clínicas e psicopatológicas
dos manuais estatísticos - como vimos acima - mas apenas de convocação a
revisões e reformas, sobretudo em definições de transtornos com óbvios exageros
e vieses.
Assim, em
entrevista ao jornal Folha de São Paulo
em fevereiro de 2012, A. Frances - o relator-chefe do DSM-IV em 2000 e hoje um
dos críticos mais ouvidos sobre o DSM-5 (Frances 2012a) - faz pertinentes
críticas ao DSM-5, enfatizando seus elos com a indústria farmacêutica e com pesquisadores
opacos ultra-especializados e distanciados da clínica com pessoas reais.
Já em
maio de 2012 o mesmo Frances comemora a retirada de alguns dos transtornos
propostos mais controversos do DSM-5, tais como “risco de psicose”, ou “depressão
em período de luto”, mas mantém afinal o que parece ser o espírito de mero
reformismo do texto. Veja “Wonderful News: DSM-5 Finally Begins Its Belated and
Necessary Retreat “ (Frances 2012). Confira o próprio site da força-tarefa do
DSM, da American Psychiatric Association, APA, em www.dsm5.org.
De modo
geral, parece que entre os psiquiatras americanos acredita-se nas “evidências”
facultando o uso generalizado e acrítico do DSM e em uma gradual auto-correção
da confiabilidade e cientificidade das futuras revisões do manual, sem questionamentos
como os propostos pelo StopDSM.
Assim,
contra este DSM-5 volto a contrapor um CID futuro com um restrito braço
classificatório colocado em seus limites utilitários (epidemiológicos,
administrativos, de pesquisa); sem apequenar a clínica em prejuízo dos
pacientes, sem menosprezar a tradição psicopatológica, considerando detidamente
os múltiplos efeitos políticos de uma nosografia onipresente, afinal em
benefício ou não das pessoas em sofrimento psíquico.
A volta do venerável problema cérebro/mente:
a proposta do interacionismo psicofísico
Nestes
últimos parágrafos, postulando que
uma nosografia deve dialogar com alguma teoria psicopatológica e que esta deve
ser enfim tributária de uma teoria da mente e do psíquico, esboçarei algumas conseqüências
da assunção de um interacionismo psicofísico de mão dupla na explicação da
origem de sintomas em psiquiatria, tanto contra o estilo DSM (disfunção
biológica) quanto contra a causação estritamente psíquica e simbólica (exclusivamente
conflitos intra e extrapsíquicos).
Vimos
que se no espírito do DSM, listas de sintomas são “expressões de meras
disfunções cerebrais e não de complexas formações simbólicas no contexto de uma
existência humana”, seria supostamente possível desconsiderar o incontornável
problema dos elos entre cérebro, mente e psiquismo, objeto das Ciências
Cognitivas. Conceitos como “formações simbólicas”, “representações mentais
investidas de afeto” ou qualquer arcabouço de teoria psíquica seriam assim
desnecessários para a Psiquiatria?
Do
mesmo modo se podem desconsiderar os eventos cerebrais, cada vez mais
documentados, ao se pensar o sofrimento
psíquico somente em termos do complexo simbolismo afetivo humano. Assim,
C. Rey, reivindicando o justo lugar para a subjetividade quer “a psique como
sinônimo de ‘mental’, não de ‘cerebral’ (...)...reivindicamos a causalidade
psíquica nos conflitos, problemas e sofrimento psíquico” (Rey & Hassan
2012: 3).
Ora, a
meu ver as assertivas acima não são incompatíveis entre si e com o que as Ciências
Cognitivas nos permitem afirmar, desde que não haja a pretensão de ser ateórico
como nos DSMs e que se assuma alguma posição quanto ao venerável problema
filosófico das relações entre o corpo/cérebro e a mente/psíquico. A meu ver,
não há só causalidade psíquica; genética e acúmulo de proteínas anormais também
estão implicados no sofrimento psíquico. Seria uma questão de proporção em cada
caso clínico real.
Assumir
um interacionismo psicofísico, além
do mero paralelismo psicofísico, permite imaginar um vice e versa da
causalidade, tanto do físico sobre o psíquico (p. ex. doença de Alzheimer,
biológica, e suas repercussões vivenciais), quanto do psíquico sobre o físico (caso
das conversões histéricas, doenças psicossomáticas e das doenças auto-imunes em
algum grau).
De modo
mais realista, há que se assumir uma interação complexa e em proporções
continuamente variáveis entre “nature” e “nurture”, p. ex. entre repetição
gerando hábito (princípio das redes neurais) e hábito gerando repetição
(masoquismo, compulsividades). Mais ainda, podemos imaginar causações
genéticas, ambientais, neurodegenerativas, psicodinâmicas e sócio-culturais retroalimentando-se
mutuamente, de modo a criar estas singularidades imprevisíveis que são os
sujeitos humanos.
Deste
modo, é possível conceber correspondências entre causações biológicas e
psíquico-culturais em Psiquiatria e postular respostas para “o problema da universalidade das
formas do patológico” enfocado pelas psicopatologias (Dunker & Neto 2011:617),
fazendo-as derivar do imbricamento complexo entre causações biológicas,
psíquicas e culturais.
Ficariam
assim no mesmo plano “a
universalidade biológica das modalidades do patológico baseada em perturbações
genéticas, endócrinas, neuroquímicas, anatômicas” e “o que há de universal
entre ou nas culturas, por exemplo, estruturas familiares, funções de
personalidade, gramáticas simbólicas”.
Do
mesmo modo, equaciona-se o problema “da evolução do patológico”, tanto na história
das culturas (p. ex., a dramática passagem das conversões observadas por
Charcot às anorexias e bulimias atuais, no contexto das histerias descritas
pela Psicanálise) como no sujeito singular (p. ex. o embate de forças no ego
tomado por disfunções cognitivas ou por alucinações e delírios que caracterizam
a psicose crônica com e sem tratamento; lembramos aqui o famoso Caso Schreber
analisado por Freud).
Para
Dunker & Neto (2011) estes dois difíceis problemas, da universalidade e da
evolução das patologias mentais, devem ser respondidos por qualquer
Psicopatologia que aspire servir de base à Psiquiatria. Infelizmente são reflexões
dos quais a weltanschauung ao estilo
DSM e das linhas organicistas mais filosoficamente tacanhas nos afastam cada vez mais.
Referências
Colluci,
C. & Garcia, R. (2012) Novo manual de diagnóstico provoca guerra na
psiquiatria, Folha de São Paulo de
05/02/12, capturado em 26/05/12 em http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/1043956
Carvalho,
C. C. (2004) Do poder das palavras às palavras do poder, Revista Portuguesa de Psicossomática vol. 6, nº 1 (55-62).
Dunker,
C. & Neto, F. (2011) A crítica psicanalítica do DSM-IV – breve história do
casamento psicopatológico entre psicanálise e psiquiatria. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. 14,
pags. 611-626.
Foucault,
M. (2005) Em defesa da sociedade. São
Paulo: Martins Fontes.
Frances,
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Retreat, Psychiatric Times, capturado
em 26/05/12 em http://www.psychiatrictimes.com/blog/frances
Frances, A. (2012a) Propostas de mudança no manual da
psiquiatria são ‘inconseqüentes’, diz especialista, Folha de São Paulo de 05/02/12, capturado em 26/05/12 em http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/1043918
Manifesto de Barcelona, capturado em 7
maio de 2012, em http://www.stopdsm.blogspot.com.br
.
Manifesto de Buenos Aires, capturado em
7 maio de 2012, em http://www.stopdsm.blogspot.com.br.
Manifesto de S. J. Del Rey, capturado em
7 maio de 2012, em http://www.stopdsm.blogspot.com.br.
Rey, C.
& Hassan, S. (2012) Por uma psicopatologia clínica não estatística; sobre o
manifesto stopDSM, Carlos Rey
entrevistado por Sara Hassan (pags. 1-5).
www.dsm5.org., site oficial da força-tarefa do
DSM-5, capturado em 12 maio 2012.
Open Letter
to DSM-5, em http://www.ipetitions.com/petition/dsm5, no site oficial da American
Psychological Association, capturado em 1 junho 2012.
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