Rumos e descaminhos em psiquiatria
Breno Serson (originalmente
discutida em 2007 no GAPP, Grupo Autônomo de Estudos em Psicanálise e
Psicofármacos, brenoserson@terra.com.br)
Buscando um psiquiatra na América.
Ano 2007. Imagine-se sofrendo de sintomas ansiosos e
depressivos, dos quais você já leu ou ouviu a respeito. A caminho de um
consultório, em um alto prédio comercial, você repassa um relato sobre fatos
marcantes ou traumáticos da sua vida. Agora na poltrona, você tenta relatar seu
sofrer ao psiquiatra que procurou na América, em desespero tímido. Um
brasileiro imigrante, por exemplo.
Desconcertado e algo surpreso com a entrevista estruturada a
que vai sendo submetido, prontamente tabulada no laptop do médico, você logo ganha a rua com receitas na mão, sem
afinal ter tido o seu relato escutado. Apenas “Yes Mr. Silva”, em diálogos que
soavam ensaiados. Ao longo de meses, você nunca vai poder detalhar as boas
razões para tomar as 4 variedades de pílulas coloridas, algo como
“benzodiazepínico, antidepressivo, estabilizador de humor e hipnótico”. Talvez
você pouco se beneficie das 10 sessões de psicoterapia comportamental
estandartizadas e do preenchimento de relatórios de sintomas e escalas
auto-aplicáveis. A psicoterapia acaba e você no íntimo ainda sofre.
A melhora e/ou normalização forçada de alguns sintomas (como
a insônia ou fadiga crônica) acabam por não compensar os efeitos adversos e
fantasiosos da medicação, as limitações, custos e desgastes do tratamento, a
sensação de dopamento, a solidão de se sentir bem pouco acolhido no tratamento.
Além de mal-estares corporais persiste afinal sofrimento, por exemplo, culpa ou conflito ansiogênico, como Hamlet
ou MacBeth simplificados, ao estar consigo e nas relações humanas.
Você assim o abandona o tratamento, de padrão “científico”,
acaba conseguindo receitas de um ou outro calmante tarja preta, um Rivotril ou
Lexotan “básicos”, usando-os ocasionalmente, nos piores momentos. Mais tarde
talvez vá buscar, com resultados muito variáveis, uma terapia de aconselhamento
filosófico (cf. Marinoff 2004), a medicina chinesa, abordagens religiosas,
suplementos “orto-moleculares” (cf. Sahley & Birkner 2004) e até mesmo
hormônio masculino (DEAH), vendido com o aval do Federal Drug Agency (FDA) como
“suplemento nutricional”, “not intended to diagnose, cure or alleviate any
disease”.
Cá estamos no esvaziamento humano, na desinformação
premeditada, no narcisismo de resultados, em um mundo Nike ou Reebok de
imagens, na tecnificação protocolar da América, que também já aqui se imitam
acriticamente, com provincianos ares de vanguarda. Apesar dos recursos
diagnósticos e farmacoterápicos de eficácia inédita no Ocidente, seriam apenas
anedóticos os resultados limitados desta medicina moderna dos quadros ansiosos
e depressivos e do que antes se chamava neurose, histeria ou quadros
neuro-vegetativos?
Como isto se relaciona com as condições de produção deste
estilo de conhecimento médico? Podemos considerar os vieses estatísticos e
metodológicos dos studies das
revistas especializadas, aqueles da indústria farmacêutica, do FDA, da
ideologia biologicista, apoiados na onipresente classificação de “transtornos
mentais” DSM (Diagnostic and Statistical Manual). Estes studies, bem encomendados e distribuídos (cf. Smith 2005) são
hegemônicos entre os artigos publicados e citados.
Não precisamos de filmes como “Obrigado por fumar” (2005,
dir. J. Reitman) ou “O jardineiro fiel” (2005, dir. F. Meirelles) para
fantasiar o networking da indústria
farmacêutica com a academia e seus expoentes midiáticos, bem como com as
empresas de pesquisa “terceirizadas”, no direcionamento das pesquisas, no uso
feito das publicações médicas e na geração dos top-ten products
farmacêuticos citados e vendidos.
Os números são mais expressivos que nunca (bilhões...) e
fala-se, por exemplo, em revistas de marketing, na “luta pelo novo mercado dos
estabilizadores do humor”, agora que muitas patentes de antidepressivos
modernos (circa 1990), lucros
passados, estão expirando.
De outro ponto de vista, há sem dúvida relação entre
prognósticos clínicos modestos e a qualidade humana das consultas da vida real,
por vezes de 15-20 minutos. Assim aplica-se a “ciência” psiquiátrica americana
à prática dos consultórios e ambulatórios, tanto públicos (onde o welfare state é passado rápido e remoto)
quanto privados, aquele dos pervasivos seguros “saúde” e do managed care. Note que isto não diz só respeito à
psiquiatria, mas atinge a medicina e a rebaixa eticamente como um todo.
Tudo sob égide de
uma ciência “baseada em evidências” que supostamente forneceria diretrizes
clínicas inequívocas (cf. Grinberg 2007) sob a forma de algoritmos e
guidelines. Estes tecnificam em excesso o médico, sob o pano de fundo da
indústria advocatícia de processos por “malpractice” e por perda de lucros do paciente,
enfim tudo novo e moderno como no marketing, como se a toda a
tradição médica fosse velharia pouco eficaz a desconsiderar.
Especificamente,
falamos de uma nova clínica psiquiátrica que se inflou dos avanços das
neurociências e da efetividade de novos fármacos para evacuar do seu campo a
psicopatologia enraizada na tradição filosófica (como a fenomenologia) ou
psicodinâmica (como a psicanálise). Esta é nova clínica onde o médico
despreza as “escolas” e longos textos escritos do passado e aplica escalas e
algoritmos dos guidelines “baseados em evidências”. Deixa também de se implicar
em uma situação relacional com o paciente que possa ser terapêutica (cf.
Ramadan 2005).
A visão crítica do estilo hegemônico na psiquiatria
americana atual é um dos pontos de partida para refletir sobre uma prática
clínica que, buscando aumentar a eficácia e segurança dos tratamentos,
voltou-se para o entendimento da relação médico – paciente e do vínculo terapêutico que multiplica o
efeito apenas farmacológico de um medicamento já bastante eficaz mesmo em
condições duplo-cegas, por exemplo, um antidepressivo moderno.
Valorizou-se a idéia segundo a qual é no seio desta relação
que se pode intervir terapeuticamente além da farmacoterapia, é ali que se deve
inicialmente tentar apreender uma pessoa sofrendo, tomada como paciente
em um contrato peculiar, contrato menos jurídico-comercial do que emocional,
carregado de reticências e receios, aquele de confiar a alguém uma alma, por assim dizer.
Mais que em cenas outras, aqui se acaba revelando a pessoa que se torna paciente, com seu
estilo narcísico e transferencial, com suas defesas psíquicas evidentes ou
sutis, fantasias, ganhos secundários, gozos masoquistas, transferências e potencial de atuações mais ou menos
atuadas.
Se isto não é entendido e trabalhado pelo psiquiatra (por
exemplo, o profissional americano DSM-style descrito acima), temos maus
resultados, abandonos, excesso de queixas de efeitos adversos, atuações várias,
sobre a medicação, sobre a relação clínica, além de possíveis usos perversos do
setting clínico (por ex, para
processar cônjuges ou receber seguros).
Neste estilo de clínica hipertrofiam-se compreensivelmente
as atuações e tudo pode ser razão ou pré-texto para tais acting outs – que devem
ser entendidos como sintomas no sentido freudiano. De qualquer modo atuações
ocorrem em algum grau em qualquer setting clínico, mesmo atento e
acolhedor e estas devem ser utilizadas na terapêutica.
Ao longo do tempo, a mise-em-scène
pode inspirar-se em horários, honorários, faltas, estilo de respostas a
telefonemas ou e-mails, recibos ou relatórios às empresas do managed care... Dúvidas ou efeitos
colaterais estranhos podem coincidir com testes de confiança neuróticos e
checagens do feed-back de
acolhimento. Até mesmo a leitura das bulas em papel ou do material que se
encontrou no Google, se não
entendidos e trabalhados pelo psiquiatra, facilmente podem inviabilizar o
tratamento proposto.
Aqui defrontamo-nos com dificuldades
relacionais, com ansiedades, sintomas e inibições que o DSM não elenca e os
artigos indexados não mencionam, dificuldades cuja compreensão e elaboração
podem resultar um melhor prognóstico para o paciente, ainda que em um
tratamento exclusivamente farmacológico.
Contra tais dificuldades, destacarei a seguir o papel de
bússola proporcionado pela psicanálise, desde texto freudiano até as leituras
atuais no campo. Acredito que tal saber já centenário não perdeu nada em
atualidade para a ars medica de
qualquer especialidade; basta estar contato direto com o paciente para se dar
conta, como detalharei abaixo.
É a partir desta compreensão do ato médico-psiquiátrico,
vivida simultaneamente e em justa medida como encontro humano eu-tu consciente
(cf. Buber s/d: 11-20) e transferência
psicanalítica de afeto em direção ao médico e a partir deste, é que concebo o
ato médico, ao mesmo tempo técnico humano. Este se inicia pelo estabelecimento
de eixos diagnósticos multiaxiais (como o faz o DSM).
Considero sobretudo os eixos psiquiátrico (incluindo
personalidade), de clínica-geral, psicológico-existencial e sócio-cultural,
entre outros, para assim propor um tratamento a esta pessoa singular (incluindo
psicoterapia, prescrições e orientações médicas, medidas outras).
Tenho empregado o termo “espectro” ou “cluster” para
designar - analogamente ao que se faz em reumatologia com o “cluster”
auto-imune e sua resposta a corticóides – quadros clínicos com características
em comum e com boa resposta a antidepressivos e psicoterapia (cf. Pereira 2003:
98-102, 212-213).
Aí incluem-se misturas em proporções variadas de (i) graus
de síndromes depressivas, da distimia à melancolia grave, (ii) graus de
sintomas obsessivo-compulsivos, incluindo “loops” de pensamentos ansiogênicos
encontrados também outros componentes do “cluster”, (iii) sintomas fóbicos,
(iv) sintomas ansiosos, psíquicos e somáticos, incluindo a (v) ansiedade
“pânica”; (vi) dores, desconfortos físicos e queixas somáticas várias como
vertigens, diarréias, fadigas crônicas, incontinências g, dispnéias
psicogênicas, mialgias, mesmo com poucas queixas ansiosas ou depressivas.
Tais quadros, majoritariamente de graus leve a moderado e
assim de abordagem ambulatorial, constituem a casuística predominante com que
tenho trabalhado em quase 20 anos de atendimento privado e fundamentam assim a
vivência clínica sobre a qual se funda a presente reflexão.
Ao discutir como medicar estes quadros com maior eficácia,
considerou-se a potencialização e sinergização do tratamento farmacológico que
podem ser obtidos quando se associam medidas psicoterápicas e de orientação de
caráter geral, ao longo de um tratamento que, tipicamente, leva vários meses,
perfazendo mais de um ano no caso de um episódio de depressão de intensidade
moderada.
Tais medidas psicoterápicas e de orientação visam um alcance
terapêutico ético, além do quadro
clínico presente e da alta: devem idealmente contribuir para a desmedicalização
e descronificação destes quadros do espectro ansioso-depressivo, dado seu caráter
potencialmente recorrente.
Lembremos que diagnóstico destes quadros ansioso-depressivos é
inicialmente sindrômico e que estes
são frequentemente re-alimentados, em alças de feed-back (cf. Wiener 1985: 1333-136) por quadros psicossomáticos,
uso de substâncias, doenças físicas e que encontram-se com freqüência
imbricados com estilos de vida e relações humanas geradoras de ansiedade, bem
como a estruturações de
personalidade neuróticas, histéricas, fóbicas ou obsessivas.
Feito o diagnóstico diferencial com síndromes
ansioso-depressivas secundárias a doenças físicas evidentes ou ao uso de drogas
psicoativas sensu latu (mesmo
corticóides e beta-bloqueadores) e com outras etiologias mais raras (tumores,
doenças neurológicas e endocrinológicas, p. ex.), busco individualizar uma
proposição terapêutica combinando, em graus variados: farmacoterapia, psicoterapia
e medidas gerais de promoção mutuamente sinérgica da saúde mental e
física.
Viso assim associar um tratamento farmacológico (que tende a
ser mainstream, convencional, nas doses e tipos de medicamentos) a
proposições psicoterápicas e de medidas gerais que a individualização do caso
possa comportar.
Acredito assim obter melhores resultados que aqueles
relatados nas publicações americanas standard,
considerada minha ênfase na psicopedagogia, no contexto de uma relação médico –
paciente relevante, em um estilo de medicar de ars medica partilhada, com tempo adequado e com a escuta do
paciente, cultivando o aspecto interativo,
dialogando com o paciente sobre os porquês e comos dos diagnósticos e das
condutas.
Outros princípios: privilegiar a mono-terapia (uso de um
único fármaco) sempre que possível, fugindo do canto da sereia da moda, que
acaba por conduzir a associações de medicamentos tratando conjuntos de co-morbidades,
sintoma-alvo ou mesmo circuitarias cerebrais supostamente hipo- ou
hiperfuncionantes. Só mudar a medicação diante de baixas respostas inequívocas
ou efeitos adversos incontornáveis; nunca por pressa terapêutica ou estimativa
inflacionada de resultado sub-ótimo.
Além do timing
(“técnico”) da titulação (isto é aumento ou diminuição progressiva ) de doses -
da ordem de muitos dias ou semanas para antidepressivos, anticonvulsivantes ou
neurolépticos - levar em conta o sutil timing
psicológico e existencial do paciente e suas tolerâncias diante dos efeitos
terapêuticos e adversos do psicofármaco. Isto pode significar, por exemplo,
retardar a progressão “técnica” de aumento de dose para o paciente que -
assentado em resistências e gozos arraigados - não tolera melhorar tão rápido. Pode ser um aumento
miligrama a miligrama para contornar uma resistência ao tratamento justificada
por efeitos colaterais incoercíveis.
Desta perspectiva, a titulação de fluoxetina de 2 a 20
miligramas ao dia, isto é, aumentos de duas gotas por semana ao longo de 10
semanas, ou a suspensão de um benzodiazepínico ao longo de 6 meses pode ser
justificada, embora vá contra a medicina “baseada em evidências”.
Em suma, devem-se reconhecer – no caso a caso da clínica
atenta - os limites da farmacoterapia e o alcance dos recursos terapêuticos
psicológicos e complementares e seus respectivos timings. Busca-se assim cultivar, agora em coro com o estilo DSM,
um pragmatismo de resultados.
Para bem medicar, além de um conhecimento da psicofarmacologia que necessita
constante atualização, considero pertinente ser hoje conservador, não
“novidadeiro”, “minimalista”, privilegiar condutas bem testadas, de consenso
mundial ao estilo OMS e não o uso pseudo-mais-atualizado dos últimos medicamentos
alardeados em artigos distribuídos pelo representante de um laboratório, ainda
que publicados no JAMA ou no Archives of General Psychiatry.
Não consigo justificar os excessos de diagnósticos de
bipolaridade e hiperatividade em adultos e crianças. Tampouco o uso
hiper-liberal de neurolépticos em casos não psicóticos ou dos
anticonvulsivantes e psicoestimulantes, para tudo e qualquer queixa. Não sinto
isenção ética em um ambiente acadêmico-farmacêutico de um grande congresso. Na
Tampouco na proliferação de estudos com novas indicações
para os psicofármacos best-sellers.
Se se vive o mundo formatado pelo establishment
psiquiátrico, parece haver cada ano um ou dois fármacos fetiche, griffes da hora, logo esquecidos.
Extremo bom senso é assim essencial em tempos de marketing
multidimensional feroz (cf. Bolguese 2004), de dissimulados modismos
diagnósticos e terapêuticos, de uma (falta de) psicopatologia obscurecida por
tendenciosidades ideológicas e políticas, que se dizem reveladoramente
“ateóricas” e “científicas”.
Vale aqui lembrar a proposta - formulada pelo homem que
editou por 25 anos o British Medical Journal - de uma moratória na publicação de testes clínicos de
medicamentos, tamanha a
promiscuidade entre indústria, pesquisadores, universidades e revistas
científicas “sérias” (Smith 2005; veja também Lown 2004, sobre a corrupção na
ciência).
Mas desprezando épocas e contingências, o medicar vai sempre
além de prescrever friamente uma poção ou pílula. Não devemos esquecer que o pharmakon
hipocrático é a palavra do médico associada
a uma mera substância físico-química que é potencialmente e ao mesmo
tempo inócua, fármaco e veneno, segundo a dose.
Valho-me assim de tradições médicas que a soberba da
psiquiatria atual tem desprezado, focada em algoritmos e guidelines diagnósticos e de tratamento. Ainda que uniformizem as
pesquisas e normatizem a terapêutica, guidelines
não totalizam a melhor clínica possível (cf. Grinberg 2007); podem convir
atenuando os custos do managed care e
a ansiedade do médico, na medida em que dessubjetivizam o sofrimento do
paciente e focam-se, por assim dizer, em baixar a pontuação recebida em uma
escala de depressão ou fobia.
Para bem medicar há que se envolver com o paciente; busco
fundamentos nas tradições da psicologia médica (a arte da relação
médico-paciente e da aliança terapêutica, cf. Zimerman 1992, Eksterman 1992),
na psicanálise (p. ex., em sua compreensão dos fenômenos
transferenciais, das atuações, gozos e ganhos secundários), na psiquiatria
psicodinâmica e fenomenológica (considerando a pessoa em seu mundo psíquico
próprio, neurótico ou não, seu Umwelt com horizontes, projetos,
perspectivas, seu dasein).
Influenciam-me também um conjunto de enfoques filosóficos
ainda mais antigo e heterodoxo, envolvendo desde conceitos gregos tais como pathos,
isomoiria, pharmakon, a ars medica enquanto ars rethorica,
o encontro eu-tu de M. Buber, até teorias sobre a significação, como as da lógica e do pragmatismo de C. S. Peirce.
Nos tratamentos prescrevo medidas gerais que visam potencializar
fármacos e psicoterapia, incluindo diálogos
com o paciente sobre saúde geral, mudanças de estilo de vida para mais
saudável, atividade física, alimentação adequada, uso do tempo e adequação de
biorritmos, uso de café, tabaco, álcool ou outras drogas lícitas ou ilícitas,
de medicamentos por vezes inadequados, por vezes levianamente prescritos em
contextos sintomáticos (p. ex. antivertiginosos, beta-bloqueadores,
benzodiazepínicos).
Concebo junto ao paciente uma balança imaginária, como a da
justiça cega alegórica, de peso dos pratos um contra o outro, considerando
fatores de estresse (p. ex. estresses evitáveis, excesso de atividades, falta
de turn-offs) versus medidas
de harmonização (p. ex. hobbies,
descansos, yoga, artes marciais, meditação, jardinagem, animais,
espiritualidade, atividades físicas e na natureza).
Ao dialogar com o paciente a respeito de medidas gerais, o
psiquiatra acaba por vezes atuando como um antigo clínico geral, contemplando o
indivíduo como uma totalidade e buscando a adesão do paciente a um tratamento -
usualmente demorado e de respostas lentas - explicando e discutindo as
prescrições de maneira não autoritária e fazendo retoricamente (convencer para
o bem) que o próprio paciente entenda as necessidades terapêuticas e “vista a
camisa” do tratamento.
Aproveitam-se estas conversas com o paciente para avaliar o
grau de necessidade e possibilidade de uma intervenção psicoterápica
específica, em função do quadro clínico e do tempo oportuno (kairós grego). Também para se fazer
diagnósticos das singularidades do paciente: capacidades egóicas e cognitivas,
nível intelectual e estilo pessoal, disponibilidade e compreensão do
tratamento, estrutura e apoio familiar, etc.
Em função das escolhas ou possibilidades do paciente, a psicoterapia
possível em dado momento abarca desde
intervenções pontuais intra-consulta a uma psicanálise extensa, passando por
breves trabalhos focais na vigência do quadro agudo.
Entre as medidas gerais inclui-se pragmaticamente tudo o que
a experiência mostra beneficiar os pacientes descritos, além das condutas
farmacológicas e/ou psicoterápicas específicas e dos esclarecimentos
psicopedagógicos sobre diagnóstico, farmacologia e prognóstico (comparando-se,
por exemplo, a situação com e sem tratamento).
O ideal é saber usar a linguagem adequada para conseguir retoricamente – no sentido do
convencimento pela lógica - que o paciente refaça por si o raciocínio clínico e
decida assim seguir o tratamento como o propõe o médico, nos seus aspectos
medicamentosos, psicoterápico e de medidas gerais.
Articulando-se com o tratamento psicoterápico ideal (que nem
sempre pode ou quer ser seguido pelo paciente), busca-se assim a compreensão e
orientação de um sujeito
descompensado pela crise ansioso-depressiva, no estilo de uma psiquiatria
humanista hoje pouco em voga. O ideal é um estar-ao-lado do paciente, ser o
remédio humano na redução do sofrimento, muito além do poder técnico da
medicina.
Desenha-se nesta clínica alguém
singular além do diagnóstico, com suas máscaras, defesas, perdas, temores,
projetos existenciais, pautas familiares e de grupos culturais; alguém que teve
de buscar ajuda, mesmo ansioso, deprimido e pessimista (ou ainda confuso e
desencorajado). Alguém deve ser eticamente conduzido a estabelecer uma aliança
terapêutica com o médico e seguir o melhor tratamento possível.
Mas em que grau deve o psiquiatra ser psicoterapeuta? O que
é o além das necessidades da
psicologia médica, isto é da boa relação médico-paciente no modelo da clínica
geral, visando complementar um tratamento farmacológico já tido como
isoladamente eficaz?
As variáveis são muitas. Os pacientes por vezes aceitam
apenas um tratamento farmacológico e não querem “fazer terapia”; ou, ao
contrário, são “contra remédios”. Há também os que já chegam com a demanda
abusiva de medicação para “resolver logo sem pensar muito”. Há os que chegam
com uma indicação precisa para
psicoterapia e que passam apenas por uma breve anamnese médica.
Em torno destas variáveis configura-se o conceito de melhor
tratamento e, portanto, (cf. acima) a necessidade de uma teoria da psique centrada no entendimento da
pessoa. Detalho abaixo o percurso que me fez privilegiar a psicanálise como
esta teoria.
Por que a psicanálise?
Como expresso por Freud, a psicanálise pode ser entendida em
três acepções, como tipo de tratamento para as neuroses, como uma psicologia do
inconsciente e como teoria da psique. A psicanálise enquanto teoria da psique é
tem sobremaneira instrumentado a minha clínica, enquanto que nas 3 acepções ela
tem sido fundamento, em uma multiplicidade de enfoques, de progressos clínicos, médicos e
psiquiátricos.
Penso em nomes que vão de H. Ey e Kaplan-Saddock à escola
psicossomática (cf. Mello Fº et alli 1992), passando por Kernberg (casos borderline), Spitz (primeira infância),
Pichón-Riviere (instituições, práticas), J. Oury (psicóticos), entre outros.
Acredito que aplicação potencial
à medicina de teorias e práticas fundadas na psicanálise é ainda maior, desde
que se possa melhorar o diálogo, hoje tenso e de desconfianças mútuas, marcado
em ambos os campos pela desunificação de enfoques.
Na minha clínica, emprego o psicanalítica para instrumentar
a compreensão, o manejo e o melhor uso possível das inevitáveis transferências envolvidas na relação
médico-paciente. Serve também a compreender a pessoa psicológica tornada paciente e, portanto, para melhor
medicá-la ou orientá-la em um tratamento.
Prescrevo, porém não aplico tratamentos psicanalíticos. Não
obstante, a psicanálise como enfoque auxilia no entendimento da dinâmica dos
conflitos manifestos ou que se supõem latentes nos pacientes e na compreensão
econômica do psiquismo destes, assim convergindo parcialmente para o objetivo
da cura psicanalítica.
Além disto, muitos dos meus pacientes estão em ou são
indicados para análise ou forma de psicoterapia correlata. Com efeito, as
neuroses apresentam sintomas, síndromes e quadros associados que notavelmente
se superpõem ao que denominei ‘transtornos ansioso-depressivos’. Estes últimos
podem mesmo ser entendidos como agudizações médicas sobre o fundo crônico da
neurose, assim como as depressões podem ser entendidas como via final comum ou
possível do padecer neurótico. Penso também na relação dos ataques agudos de
pânico com componentes obsessivos e histéricos, componentes que uma análise
idealmente em curso atualiza e repete a cada sessão, até a alta.
Todavia ao expressar-me em termos psicanalíticos nos meios
psiquiátricos hoje hegemônicos (p. ex. congressos de psiquiatria) percebo uma
fria acolhida, como fosse atribuição de irrelevância à minha expressão.
Inversamente, adentrar como psiquiatra clínico em certos círculos analíticos -
no contexto do atual discurso psiquiátrico que aparece nas mídias - é enfrentar
olhares iniciais inequivocamente desconfiados.
Infelizmente, tanto lacanianos brandindo matemas e esses barrados, quanto professores de
psiquiatria dando entrevistas sobre o conhecimento do cérebro para explicar
todo adoecer psíquico parecem-me perfeitamente desconexos da clínica real. Daí
falar-se de um “tenso relacionamento” psicanálise/psiquiatria nas conversas do
GAPP, grupo de estudos sobre Psicanálise e Psicofármacos do qual participei
(cf. Psicomundo.com/foros temáticos).
Reconheço como médico a utilidade de dialogar criticamente a
psicanálise no contexto da clínica psiquiátrica atual. Isto é tanto em função
dos avanços farmacológicos, neurocientíficos e psicológicos quanto das novas
patoplastias e prevalências clínicas trazidas pelas mudanças dos séculos (p.
ex. novas adicções, compulsões, distúrbios alimentares, todo um novo sofrer
narcisista que os psicanalistas tem compreendido mais que ninguém (cf.
Roudinesco 2000, Birman 1998, Rojas & Sternbach 1998).
Tanto quanto a psiquiatria DSM não quer ouvir falar em
psicanálise, também a hiper-sofisticação dos termos de certas teorias e
práticas de psicanalistas, alguns patologicamente reclusos em suas afiliações e
politicagens, conduzem à quase ausência de diálogo, nas academias e nos
serviços de saúde, entre psicoterapeutas (sobretudo psicanalistas) e os
psiquiatras. Assim, encontro curiosa característica em comum entre psiquiatras
DSM e certos analistas mais dogmáticos, em torno da pouca conexão terapêutica
com o sofrimento dos pacientes reais.
Não trabalho assim diretamente com a técnica psicanalítica;
não tenho divã nem busco criar neuroses transferenciais regressivas, porém
encontro mais subsídios para minha clínica psiquiátrica na psicanálise do que
em qualquer outra teoria sobre a patologia mental.
Dentre as várias teorias psicológicas e técnicas
psicoterapêuticas que tomei contato, fui me inclinando a privilegiar a
psicanálise como modelo psicológico para o viver e o adoecer humanos (e não,
por exemplo, o comportamentalismo, a psicologia cognitiva anglo-saxônica, o
psicodrama ou modelos supostamente ateóricos).
Não por acaso minha técnica psicoterapêutica filia-se à
psicanálise na vertente de Malan, Wolberg, Fiorini, Braier (cf, p. ex. Fiorini
1991), aquela psicoterapia que foi-se aperfeiçoando-se em ser mais breve,
egóica, focal, menos intensiva e no contexto médico citado, de transferência
mantida levemente positiva. Não buscando a problemática edípica mais profunda e
mais as derivações atuais dos conflitos do presente, tal técnica tangencia a
psicologia do ego, a psicoterapia cognitiva e a ars medica tradicional para pensar os sintomas neuróticos.
No meu viés pessoal, tal técnica psicoterapêutica acaba por
permitir a presença de elementos de compreensão humana de raiz não
psicanalítica, tais como a fenomenologia de Jaspers ou Binswanger, o encontro
ideal eu-tu de M. Buber, o existencialismo do projeto sartreano, o legado dos
filósofos estóicos e epicuristas, entre outros.
Mas é a postulação de um inconsciente,
de um conceito bio-mental como o de pulsão, da noção de conflitos dinâmicos
entre instâncias tais como id, ego e superego é que melhor permite entender
meus pacientes ansioso-depressivos, sobrepondo-se a conceitos úteis, porém limitados como “crenças
cognitivas disfuncionais” ou “projeto existencial”.
A psiquiatria hoje hegemônica quase dá exclusividade às
psicoterapias cognitivo-comportamentais justificando-se através de sua
validação por estudos de curta duração nos moldes da ciência oficial. Embora
úteis, sobretudo em contexto da saúde pública (melhor dez sessões
estandardizadas que nada), considero-as limitadas, obtendo atenuações
sintomáticas sem mudar o quadro de base. Minha escolha é conseguir dar, por
outros vieses, mais saúde, autonomia e liberdade dos sintomas ao paciente,
buscando mudar assim algo do quadro de base, sem, todavia pretender uma profunda re-estruturação da
personalidade, como idealmente buscada pela psicanálise.
Parto das antigas filosofias da ação da techné e da ars
medica, da ética do benefício ao paciente, de um referencial teórico na
psicanálise e de uma prática psicoterápica de base analítica (focal, breve,
mais egóica-adaptativa e menos transferencial-regressiva, que acredito melhor
adequar-se às necessidades psicoterapêuticas médias do paciente que me
procura).
Com estes vieses de escolha, tenho clinicado ao longo dos
anos com muitos pacientes tantas vezes coincidem com clientes dos
psicanalistas, que por suas transferências apresentam-se como neuróticos, mas
que me procuram com queixas polimorfas de sintomas depressivos, ansiedades
crônicas ou pânicas, sono e apetites comprometidos, mal-estares e adoeceres
físicos associados (que os fizeram vir, por vezes, encaminhados por outros
médicos).
Trabalho majoritariamente com este perfil clínico, com estas
pessoas freqüentemente “normóticas”, mas com pior saúde e qualidade de vida que
a média, que acabaria por receber diagnósticos padrão da psiquiatria atual e
que certamente, em casos indicados, beneficia-se global e
inequivocamente do uso de medicamentos antidepressivos.
À parte uma parcela de pacientes que já me busca para uma
psicoterapia como a um psicólogo - terapeuta e uma parcela bem menor de
pacientes psiquiátricos basicamente “não-neuróticos” (psicóticos, demenciados,
bipolares, epiléticos, farmacodependentes, etc.), esta é a clínica que assim me
aproxima dos psicanalistas, graças à intersecção dos quadros clínicos.
Todavia minha real proximidade com a psicanálise deriva da
posição sui generis que lhe atribuo na compreensão e intervenção sobre o
que é humano, da posição centrada nos
conceitos de inconsciente, corpo erógeno, ser na linguagem e, enfatizaria com
os existencialistas, ser para a
morte.
Afinal não consigo não levar em conta, a cada
atendimento, conceitos tais como a formação do sonho/sintoma, o ideal do eu, a
economia do amor narcísico, o gozo da doença, as questões edípicas na história
de cada um. Elementos provenientes das terapias existenciais, cognitivas,
gestálticas, de filosofias humanistas são fontes teórico-clínicas que também
acabam sendo lembrados, elementos secundários participando de séries
complementares (multiplicativas, não mutuamente excludentes) das controversas
etiopatogenias ansioso-depressivas.
“Séries complementares” e continuum: o homem de
ciência e epistemólogo Freud adota e inova estes conceitos chave para uma
psicopatologia onde nature e nurtrure, em quantas dimensões que
se queira, complementam-se; o gênio de Freud não se opõe assim ao de Darwin na
gênese do padecer psíquico.
Já na ars terapêutica a relação entre farmacoterapia
e psicoterapia é mais complexa, embora enquanto séries complementares em continua
tais tratamentos não excludentes podem inclusive ser sinérgicos, mais que
apenas somatórios. Este é um dos temas dos textos que se seguem, marcados pela
minha perplexidade diante dos rumos e impasses da clínica psi contemporânea.
De Freud ao Prozac
A Medicina deu as costas para Freud desde que este se fez
psicanalista, trazendo a perigosa sexualidade para o campo das doenças ditas
nervosas. Talvez identificado com o conquistador Aníbal e ao judeu que não se
abaixaria para pegar seu chapéu na lama, Freud por sua vez foi dando as costas
ao mundo Ärztlich, médico-sapiente. De todo o modo, a Psicanálise,
inicialmente concebida por médicos, foi se fazendo leiga e seus praticantes
cada vez menos pertenciam às doutas sociedades médicas, cada vez menos pensavam
clinicamente como médicos.
Para o jovem psicanalista Freud, pouco havia a estudar da
medicina de sua época. De um lado, a terapia psicanalítica das neuroses era
pouco afim ao bem-pensar neuropsiquiátrico, ainda contaminado pelo conceito de
degenerescência, pelos tratamentos morais e pela sífilis incurável. De outro
lado, os tratamentos propostos em 1900 pouco beneficiavam os neuróticos de
então; eletroterapias, curas termais, discursos bem-intencionados e mesmo a
hipnose mostravam resultados decepcionantes e erráticos.
Os medicamentos de então eram calmantes ou excitantes
rudimentares do ponto de vista terapêutico moderno. As adicções e estilos de
vida atuais mal começavam, como soube Freud em primeira mão com a cocaína e...
à loucura, bem, à grande loucura restavam os asilos.
Cem anos se passaram e os medicamentos, de Freud ao Prozac,
tornaram-se a base dos tratamentos psiquiátricos. Dos antigos láudano, hidrato
de cloral, gás hilariante, morfina e afins, ao atual arsenal de
antidepressivos, neurolépticos e estabilizadores do humor produziu-se uma
reviravolta na medicina.
Teorias à parte, podemos enfim atuar com real eficácia sobre
quase todas as psicoses, crises de ansiedade, comportamentos compulsivos,
bipolaridades do humor. Chega-se mesmo agora pretender, ou “sem-querer”, tratar
pautas sintomáticas histéricas (como poderíamos entender a “hipersensibilidade
à rejeição”, cf. Kramer 1993:105-114).
Infelizmente para Freud, das experiências com a cocaína em
1884 até sua morte em Londres em 1939, com uma dose de morfina dada pelo Dr.
Schur, nada foi vivido desta revolução na eficácia dos psicofármacos
modernos, iniciada nos anos 50-60. Poucos anos antes, no Esboço de
Psicanálise Freud mostrava-se favorável até a substituir o longo e caro
tratamento psicanalítico por “substâncias químicas”, caso surgissem (Freud
1940: 210), assim como aceitava, desde 1918, “adaptar nossa técnica às novas
condições” (Freud 1918: 210), adequando-a a demanda social por tratamentos (p.
ex. psicoterapias breves de base analítica). Citações chavão, mas idéias
familiares a um médico.
Vivesse hoje, creio que Freud endossaria a convivência e o
diálogo da sua técnica com tratamentos médico-psicoterápicos atuais, só talvez
só insistisse em não chamar os últimos de “psicanálise”, ainda que se
inspirassem nesta. Mas como entenderia ele a recusa ao inconsciente entre os
psiquiatras do séc. XXI, incensando “neuroquímicos” e prescrevendo
psicoterapias protocolares, “provadas” em números questionáveis?
Ansiedade tratada com
antidepressivo? Pacientes em análise tomando antidepressivos?
Lançados nos anos 60 como “definitivos” pela indústria
farmacêutica, para substituir os então “perigosos” barbitúricos, os
ansiolíticos benzodiazepínicos do tipo Valium e Lexotan apenas atenuavam ou
“abafavam” sintomas ansiosos, sedando mais ou menos o paciente sem alterar a vivência
das representações e repetições neuróticas.
Pertencendo à primeira geração de antidepressivos, os
tricíclicos - cujo protótipo é a imipramina (Tofranil) - demonstraram modificar
sintomas até então associados às neuroses, resultando por fim na distinção
farmacológica entre “pânico” e a ansiedade pouco responsiva à imipramina (D.
Klein 1980; cf. Pereira 2003: 212-213).
Grosso modo, a imipramina abortava completamente as crises
de ansiedade fásica, “pânica”, distinguindo-a farmacologicamente da ansiedade
de base, tônica e crônica, cujos sintomas eram apenas atenuados pelos
benzodiazepínicos.
Tais experiências acabariam por determinar novo viés à
psiquiatria que passa, de maneira inédita, a fundar categorias
nosográficas sobre responsividades medicamentosas (cf. Coser 2003: 43, 59).
Apesar de pertinentes críticas (cf. Pereira 2003), temendo
uma desqualificação da psicopatologia e arriscadas hipóteses etiopatogências, a
responsividade a antidepressivos não é achado fortuito ou tendenciosidade a priori. A meu ver, categorias
nosográficas podem efetivamente se fundar em responsividades à medicação.
Afinal,
categorias tais não se chocam com a tradição do pensamento médico a medida em
que se entende tradicionalmente que o tratamento deriva ou decorre do
diagnóstico, desde que em benefício do paciente. Afinal, é o paciente que se
beneficia do tratamento fundado numa distinção diagnóstica (definidora da
categoria empírica) que considere em justa medida a terapêutica
disponível. “Erre o diagnóstico, acerte o tratamento” é o pragmático aforismo
clínico, sempre atual.
Nada disto impede, como argumentam entre outros Pereira
2003, Coser 2003 e Ramadan 2005, que tais categorias sejam problemáticas e
insiram–se em contexto ideológico complexo, desembocando na “medicina baseada
em evidências” no care management e
no que poderíamos por brevidade chamar de psiquiatria DSM, desumanizada e
atrelada a interesses econômicos.
Mas voltemos à clínica cotidiana dos anos 1960 a 80; os
tricíclicos e seus contemporâneos IMAO mostravam efeitos colaterais e de
superdosagem potencialmente perigosos (p. ex. arritmias cardíacas, crises hipo-
ou hipertensivas fatais) e/ou perturbadores (p. ex. tonturas severas, visão borrada). Seu emprego
clínico ficava assim limitado a situações mais graves, mais próximas à
melancolia clássica e às depressões psicóticas, freqüentemente em contexto
hospitalar.
Com efeito, as relações risco/benefício e custo/benefício ao
paciente, pedras de toque da clínica ética, desaconselhavam o uso dos
antidepressivos de então em boa parte das depressões mais leves, mais
caracteriológicas ou tidas como “neuróticas” ou “reativas”. Dizia-se mesmo à
época, um tanto dogmaticamente, que só as depressões ditas “endógenas”
respondiam bem aos antidepressivos. A conduta prudente diante de sintomas neuróticos
(termo que fazia coincidir as descrições psiquiátricas e psicanalíticas de
então) era assim basicamente psicoterápica.
Note-se de passagem que as próprias sub-categorias
“endógena” e “reativa” derivavam de uma psicopatologia fenomenológica,
inspirada em Jaspers e em outros autores contemporâneos de Freud, na qual o
grau de compreensão psicológica e humana (“reativa”) e o desconhecimento
etiológico (“endógena”) ocupavam o lugar, também problemático, dos atuais
critérios de responsividade medicamentosa e/ou o grupamento de “n” sintomas
necessários e suficientes para um diagnóstico do tipo DSM.
Portanto às depressões não-endógenas, com certo grau de
correlação com eventos psicológicos e existenciais, indicava-se tratamento
psicoterápico, por exemplo psicanalítico, até porque havia uma considerável
superposição e co-morbidade entre sintomas ansiosos e depressivos e sintomas
ainda chamados então de “neuróticos” (cf. Coser 2003:86-92).
As então chamadas “crises existenciais”, bem como sintomas
obsessivos, fobias, crises de ansiedade e mesmo o que hoje a psiquiatria chama
de “distimia”, não eram usualmente tratados com antidepressivos, ainda que a potência
terapêutica dos antidepressivos mais antigos (p. ex. Anafranil) nestes casos
não difira tanto dos novos medicamentos (como Zoloft), diferindo sobretudo o
perfil de efeitos adversos e riscos.
Seja como for, com o surgimento da fluoxetina (Prozac) e da
já vasta família de antidepressivos com reduzidos efeitos colaterais com
relação aos tricíclicos e os IMAO, frise-se, há apenas 15-25 anos,
iniciou-se o tratamento medicamentoso massivo de quadros ansiosos e
depressivos, cujo balanço risco-custo / benefício antes não o indicaria
rotineiramente.
Com esta massificação de uso crônico em pacientes menos
comprometidos (ou apenas neuróticos) observou-se porém uma inesperada mudança
quantitativa e qualitativa de pautas neuróticas e psicossomáticas
associadas à ansiedade, depressões, fobias e obsessões.
A extensão desta mudança clínica em neuróticos assim
medicados é debatida em Ouvindo o Prozac, de Peter Kramer (Kramer 1995),
livro no limite nebuloso entre simulacro científico, descrição empírica romanceada
e loa publicitária. Os contrapontos deste livro são, por exemplo, as
associações e “sites” também tão americanos dos “lesados pelo Prozac” e livros
como Break your prescribed addiction: a guide to coming off tranquilizers,
antidepressants (SSRI, MAOI and more) with aminoacids and nutrient therapy
(Sahley & Birkner, 2004).
Mas por controversa e polarizada que seja questão, para os
psicanalistas já não é mais possível entender o arsenal terapêutico atual – ou
seu uso atual - como algo meramente sintomático, paliativo ou calmante.
De modo inédito a medicina, influenciada pela milionária indústria farmacêutica
e pelo pathos moderno (ou pós-moderno) ocupa-se hoje de sintomas
neuróticos que ocupavam e ocupam-se os psicanalistas. Assim, os que hoje ainda
escutam algo ao pé de seus divãs não têm mais como não ouvir falar de
psiquiatria e neurotransmissores, trazidos por nomes de produtos tão
polissêmicos e convidativos como Effexor, Prolift, Psiquial ou Wellbutrin.
A Psiquiatria que já havia sido “fenomenológica” nas
psicoses como “dinâmica” e próxima da psicanálise na questão das neuroses,
falamos de anos 50 ou 60, hoje é hegemonicamente biológica e atesta,
estatística e triunfalmente, a notável melhora de “checklists” de sintomas
antes chamados de neuróticos através de medicamentos e psicoterapias
cognitivo-comportamentais (estas a combater comportamentos desadaptados).
Mais ainda, tal psiquiatria não apenas rejeita
explicitamente a psicanálise como instrumento terapêutico, mas também aposenta,
como velharias sem comprovação, conceitos como inconsciente, neurose, histeria,
metapsicologia.
Médicos mais “humanistas” e psicanalistas podem ficar
chocados, mas para a medicina atual como um todo, tecnificada, reificada e
integrante de sistemas de atendimento gerenciais, a psiquiatria DSM estaria
enfim madura. Seria um ramo da medicina científica ocidental, liberta de
elucubrações teóricas indemonstráveis e de tratamentos assistemáticos de casos
individuais, liberta, por exemplo, da psicanálise.
A desvalorização da psicopatologia e da tradição, a
fetichização do medicamento agindo sobre circuitos neuronais e a passagem
problemática da responsividade clínica a hipóteses etiopatogênicas não impedem,
todavia, um ganho de perspectiva
terapêutica na psiquiatria atual. Tome-se por exemplo a seguinte frase, pinçada
da crítica de F. Coser ao estilo hoje dominante de psiquiatria clínica e
teórica: “o fato de uma determinada síndrome clínica melhorar com o uso de
drogas atualmente rotuladas antidepressivas não revela que sua natureza seja da
ordem que psicopatologicamente se define como depressão” (Coser 2003: 65).
Sem perder seu “valor de face” tal frase pode também ter
invertido seu teor de crítica e justificar-se na ética médica, graças à
favorável relação custo-benefício do recorte nosológico / medicamentoso operado
pelos antidepressivos sobre o que
tenho chamado de “espectro ansioso-depressivo”.
TOC, fobias, pânico, ansiedade, transtornos somatoformes.
Identifique-os com critérios operacionais claros. A metáfora seria aqui, erre
(ou ponha entre parênteses) a psicopatologia, acerte o medicamento (com base no
perfil de efeitos terapêuticos, colaterais, adversos e risco). Mas o exagero da
clínica psiquiátrica atual tem sido “faça um rápido diagnóstico multiaxial
operacional em torno de uma síndrome ansioso-depressiva e de suas
co-morbidades, sem se deter em singularidades pessoais e privilegiando o tempo
escasso das consultas para escolher e monitorar tratamentos medicamentosos, um
a cada co-morbidade”.
Tudo muito adequado, inclusive a um sistema de saúde e de
doença, inclusive se a idéia de saúde pública ou privada for “com poucos
recursos, melhor um tratamento farmacológico rudimentar para muitos do que um
atendimento mais integral para poucos”.
Ainda assim, o exagero tecnicista dos atendimentos reais,
mesmo em países ricos, faz com que falte à consulta apenas o mais importante:
uma pessoa singular tornada paciente. Tudo muito adequado, mas o
paciente não encontra acolhimento, mudança de perspectiva em seu sofrimento, não
“melhora” a longo prazo. Após um ano o paciente pode não mais preencher
critérios DSM para depressão, mas vive depressivamente, medicado ou não.
Afinal os estudos da indústria farmacêutica que vão
dominando as publicações “técnicas” indexadas garantem os resultados por 6 ou
24 semanas e a clínica mimética a este espírito não comporta um encontro humano
que deveria fazer parte de um tratamento exitoso. Indústria e clínica sem
sujeitos pouco mobilizam mudanças em pessoas, menos ainda implicam um sujeito em
seus desejos e escolhas.
Daí minha reconvocação dos “ultrapassados” fenomenologistas,
psicanalistas, existencialistas, filósofos não positivistas, daí a atualidade
dos críticos da “sociedade depressiva” (Roudinesco 2000: 13-52), da “troca de
escolas por escalas” (Ramadan 2005: 175-210), da “razão depressiva” (Coser
2003: 17-26).
Como conclusão, como conciliar a tradição milenar da
medicina, pródiga em recursos “humanos” e quase desprovida de recurso
tecnológico com o seu contrário contemporâneo, em um mundo dessacralizado,
desinformado e re-mistificado?
Mais especificamente, na clínica psiquiátrica, buscar a arte
médica ao usar os medicamentos modernos em torno pharmakon, e almejar,
como o faz a psicanálise, um grau adicional de compreensão e intervenção humana
que modifique favoravelmente a evolução de um padecer crônico.
Diálogo com Eduardo Braier sobre psicofármacos
Psicoterapia Breve de Orientação Psicanalítica
(Braier 1997) é um livro sóbrio que aborda aspectos técnicos da condução de
terapias; dialoga com toda uma tradição que remonta a Ferenczi, beneficiando-se
da importante vivência institucional-psicoterápica da Argentina dos anos 50 a
80.
Ainda que o livro tenha sido publicado originalmente em
1984, a abordagem de Braier à questão do uso associado de psicofármacos à
psicoterapia – brevemente explicitada nas págs. 120-121 - permanece, na minha
visão, atual, pertinente e ponderada. Não obstante, a partir dela criticarei
argumentos que parecem comuns a muitos autores de “orientação psicanalítica”,
como a ênfase sobre o caráter de ”alívio sintomático” do uso de psicofármacos,
ou o “escamoteamento de conflitos” que estes poderiam provocar.
Na direção oposta, levanto a hipótese de se considerar
situações clínicas reais nas quais a medicação enquanto pharmakon,
atenuando (p. ex. TOC, ansiedade crônica) ou suprimindo (p. ex. pânico)
sintomas ansioso-depressivos, poderia chegar a, com o uso crônico, a modificar
pautas e estilos neuróticos. Aqui me aproximo cautelosamente de Kramer do Ouvindo
o Prozac (Kramer 1995) e questiono-me também sobre casos nos quais a
farmacoterapia traz singular avanço para uma psicoterapia e mesmo para a escuta
em um dispositivo psicanalítico. Não excluo aqui os abusos e maus usos da
medicação na “vida real” e busco com Braier pensar o uso ético, normativo e
informado de psicofármacos.
Um exemplo eloqüente de tratamento integrado é aquele do que
hoje se chama “transtorno do pânico”. O antidepressivo que abole a crise de
ansiedade deve ser só um passo para uma elaboração psicoterápica incontornável
da agorafobia por vezes gravíssima do ex-“panicado”. Em um bom senso básico:
nem a psicoterapia abole as crises de pânico, nem o medicamento age diretamente
sobre a agorafobia (fantasia representacional de desamparo, cf. Pereira 2003:
66-71); o retardo em associá-los é que favorece a cronificação do quadro.
Braier reconhece de início a utilidade da “combinação de
psicoterapia com psicodrogas”, desde que “se tenham presentes certas
precauções”. Lista-se o ”alívio sintomático, melhoria da comunicação permitindo
o acesso à psicoterapia de pacientes que de outro modo seriam difíceis de
tratar, a facilitação do insight, etc”. Quando indica farmacoterapia ao
seu paciente psicoterápico, Braier lhe diz que “a medicação é destinada a
tornar possível (ou facilitar) sua comunicação comigo, no caso que esta esteja
muito difícil”.
Acredito que poucos discordam do uso de medicação em
psicóticos produtivos e deprimidos graves para “tornar a comunicação possível”;
seria mesmo insensato contra-indicar a farmacoterapia a este catatônico, àquele
delirante aos brados ou ao melancólico em mutismo.
Mas quando se justifica “facilitar” uma terapia ou análise
com medicamentos? Medicar um obsessivo comum ou uma histérica não melancólica?
Medicar quem faz uso gozoso ou perverso da medicação? Prescrever Rivotril para
o cheirador de cocaína dormir? Para esposa “apagar” e se esquivar do marido?
Nestas questões temos um excelente ponto de partida para questionar o critério
da indicação da farmacoterapia sensu latu.
Quando medica seu paciente em psicoterapia breve, Braier
ressalta o caráter paliativo, de alívio sintomático contra o qual se deve
“insistir junto ao paciente que ele deve aspirar a algo mais, isto é à
compreensão e à resolução do conflito por meio da psicoterapia”, até porque,
como assinala F. Lessa (Lessa 2001: 103) “Os psicofármacos, de modo geral, não
promovem, por si, formas para o trabalho de re-significação e transformação dos
motivos subjetivos da angústia”. Como sublinhado por S. Hassan (2005: 10)
“descartam-se efeitos sobre algum nível de conflito ou estruturas de
linguagem”.
Podemos dizer que o fármaco, com suas presumidas ações em
cascata sobre os neurotransmissores, mesmo em longo prazo não modifica
estruturas neuróticas, não age sobre conflitos, sobre sintomas na acepção
psicanalítica enquanto soluções de compromisso (como na formação do sonho),
enfim não age suprimindo ou alterando representações. Sua ação se dá
basicamente na tendência à normalização somática: do sono, dos apetites
alterados, das sensações dolorosas, da angústia ou ansiedade de base (“não
representacional”), dos efeitos de repetições não transferenciais ou “loops” de
pensamentos obsessivamente angustiosos, das escaladas de ansiedade pânica e das
hiperativações dos medos. A pessoa pensa e sente como antes, porém angustia-se
ou foca-se menos na taquicardia (que já é menos intensa) e na negatividade do
vivido, sente igual mas está “menos aí”.
Não conseguimos ainda distinguir com clareza o que são
causas, conseqüências, efeitos diretos ou indiretos dos antidepressivos sobre a
hipercomplexa modulação de neurotransmissores e neurohormônios. Clinicamente, o
que importa é observar a melhora de quadros com componentes do espectro
ansioso-depressivo, além de somatizações como a hipertensão arterial, quedas
imunitárias, crises de asma, sintomas relatados como “gastrite”, “labirintite”,
“TPM”, lombalgias e mialgias.
Mesmo com as melhoras globais obtidas com um tratamento
farmacológico, concordo com Braier e com os autores citados acima a respeito da
“aspiração a algo mais”, até porque me dou conta, na vivência clínica, do que a
medicação não pode fazer, fato que o paciente só saberia em longo prazo.
É assim dever do psiquiatra, além de diagnosticar e medicar de acordo, insistir
em muitos casos no tratamento psicoterápico e nas orientações de bom senso
médico.
Contra a metáfora de Braier da medicação como analgésico
para a dor psíquica (dor de dente), só solucionada na raiz pela escavação e
obturação da cárie pela psicoterapia (dentista), penso que os medicamentos
diferem entre si, agindo em um continuum que vai da analgesia à “cura
definitiva”, que depende não só de ações neuroquímicas, mas também do contexto pharmakon,
transferencial, simbólico e de contexto de tratamento integral.
Assim a auto-medicação com um ansiolítico como Lexotan é
próximo ao alívio sintomático agudo do analgésico de Braier, um antidepressivo
usado por vários meses em contexto terapêutico adequado favorece um estado
global mais saudável que vai além da melhora de uma soma de sintomas-alvo e
avança no continuum mera analgesia / cura ou remissão estável.
Como descrever, por exemplo, a terapia para o resto da vida
com lítio, transformando dramaticamente a vida do ex-freqüentador de
internações psiquiátricas e de catástrofes vitais periódicas? Pragmatismo
médico: pouco importa a causa das graves oscilações do humor ou o mecanismo de
ação do lítio, ambos ainda largamente desconhecidos, importa que o lítio trata;
neste e em outros casos a competência do médico consiste apenas em conseguir
manter indefinidamente o tratamento.
Controle ou atenuação de um quadro ansioso-depressivo, em
casos favoráveis, faz com que o paciente retome seu funcionamento pré-mórbido
sem medicação. Nestes casos o medicamento não mudou por si a (pouca)
estruturação egóica do deprimido nem curou o neurótico de suas repetições. Mas
não se trata apenas de curar a dor de dente com Novalgina ou tomar
antiinflamatórios no lugar de tratar a causa da inflamação.
Braier sugere que o próprio terapeuta medique se possível. É
quem “conhecendo o paciente melhor que seus colegas, parece ser o mais indicado
para poder realizar uma escolha adequada do medicamento, controlar seus efeitos
e ir efetuando as modificações que julgar convenientes, sem que se necessite da
participação de um terceiro” (Braier 1997: 120).
Acredito que vários esquemas são possíveis quando se decide
quem medica. O psicoterapeuta médico pode medicar seguindo a ética ponderação
de Braier, principalmente quando se trata de uma terapia não indutora de
regressões ou transferências negativas com potencial de atuações. Quando este
potencial de atuação do paciente for alto (histerias graves, históricos de
atuações medicamentosas ou auto-agressões, perversões, abusos graves de
substâncias) deve-se considerar indicar outro profissional.
Assim, sempre que possível sigo Braier e medico meu paciente
de terapia, se necessário. Sobretudo nos casos menos graves é mais prático e
seguro, por acompanhar bem mais de perto a ação medicamentosa (p. ex. 1 vez por
semana e não 1 vez por mês). Em um contexto psicoterápico, cinco a dez minutos
a cada duas sessões podem ser suficientes para avaliações médicas e prescrições
de exames de controle ou receitas, de preferência no início da sessão.
Por vezes temos que rever avaliações iniciais. Por exemplo,
aquele paciente em psicoterapia vai piorando seu mal estar e o psicoterapeuta
não médico deve idealmente saber o momento oportuno (o kairós de
Hipócrates) para encaminhá-lo à avaliação médica. Já no caso do psicoterapeuta
que medica pode ocorrer que a resistência à psicoterapia passe a expressar-se
pelo uso excessivo do tempo das sessões em discursos em torno da medicação ou
de novos sintomas, colocando-se entre médico e remédio (a paciente
repetidamente criava resistências e chamava-me de Dr. Serzone, meu nome de
família sendo Serson). Podem também ocorrer sub- ou superdosagens atuadas,
acionamentos do terapeuta em supostas emergências médicas e várias situações
análogas àquelas magistralmente reportadas por L. Israel em A histérica, o
sexo e o médico (Israel 1987).
Em casos assim, que podem por vezes só aparecer ao longo do
tratamento, com o estabelecimento de transferências além das aparências
sociais, deve-se ponderar o encaminhamento do tratamento farmacológico para um
colega médico, idealmente em condição de diálogo clínico comigo, devidamente
autorizado pelo paciente. Inversamente, pacientes já cronicamente estabilizados
com medicação podem demandar terem os tratamentos farmacológicos monitorados
pelo atual psicoterapeuta médico, o que muitas vezes é possível e prático.
Sensatos e insensatos a respeito de psicofármacos e psicoterapias
Sensatos são médicos e psicoterapeutas capazes de pensar
criticamente a associação entre o uso de psicofármacos e práticas
psicoterápicas, agindo com pertinência diante de cada caso clínico em sua
singularidade.
Insensatos a meu ver seriam os aprioristas de todas as
naturezas. Restringindo-me aos aprioristas psiquiatras e psicanalistas concebo
vários tipos de insensatos. Penso inicialmente nos que sustentam posições
desinformadas, por exemplo, jovens psiquiatras americanos sem idéia razoável do
que seja a psicanálise, nada surpreendente quando a literatura psiquiátrica
americana hoje só prescreve as psicoterapias cognitivo-comportamentais - as únicas
que seriam “comprovadamente” eficazes.
Para os mestres destes jovens médicos, muitos deles arautos
desta psiquiatria DSM extremada, já não se trata mais de mera desinformação: a
psicanálise mal vale a menção como um antigo tratamento e de uma teoria não
científica, tão pouco relevante para a clínica psiquiátrica quanto os
barbitúricos ou a hipnose.
Simetricamente ainda temos os psicanalistas pouco
informados, sem qualquer noção da clínica com medicamentos como os que passaram
a ser usados só a partir dos anos 1990. Estes se imbricam com dogmáticos e
“ortodoxos” que acreditam no perigo de deslocamentos maciços e imprevisíveis de
sintomas, em um dopamento a priori do
ser desejante do paciente ou pior, em uma interferência que seria sempre
prejudicial ao bom desenrolar da neurose de transferência.
Insensatos são os fukuyamas da psiquiatria, que
pregam o “fim da história” psicodinâmica, existencial ou do inconsciente,
tornados afinal desnecessários pela compreensão dos circuitos cerebrais e pelos
tratamentos farmacológicos poderosos. Insensatez menos consciente seria a dos
psicanalistas e psicoterapeutas que não podem contemplar o dano narcísico
trazida pelo prestígio da cena farmacológica atual.
Mesmo os médicos acabam sendo e tendo pacientes
desimplicados enquanto sujeitos, que assim como adolescentes sem limites, mal
conseguem manter das exigências de um tratamento médico, sendo também afetados
pelo discurso de eficácia rápida das psicoterapias cognitivo-comportamentais e
por uma weltangschaung pós-moderna, calcada no marketing hedonista, no
cosmético e aparente como medida das coisas, na descartabilidade humana, na
superficialidade, na estereotipia e na frivolidade geral (cf. o mal estar
pós-moderno em Bauman 1998, Birman 1998).
Diante do mal estar difuso ou pânico, o público é orientado
pela mídia “séria” (VEJA?; Newsweek? Google?) a buscar algo caro e novíssimo
vindo de um laboratório, e/ou um protocolo psicoterapêutico de poucas sessões,
com questionários e auto-testes antes e depois. Daí certo mal estar narcísico
do psicanalista atual. Daí o mal estar pós-moderno que a soberba da psiquiatria
americanizada ainda esconde de si mesma. Daí o apelo às pseudo-ciências como a Cientology
e ao irracionalismo exuberante dos fetiches pseudo-terapêuticos, florais,
cristais, auras, vidas passadas, auto-ajudas, reprogramações
neuro-lingüísticas, “curas” sem remédios nem terapias, etc.
O que deve fazer um médico?
Os exageros da psiquiatria DSM dão margem a críticas,
pertinentes, a meu ver, sobre a frieza pessoal das consultas, sobre a supermedicação
(como após 20 minutos de consulta sair com a prescrição de 4 medicamentos, um
para cada sintoma central) sobre a invasividade de diagnósticos tais
como hiperatividade em crianças, bipolaridade em pessoas irritáveis, igualmente
resultando em tratamentos contínuos com anfetaminas e anticonvulsivantes
estabilizadores do humor. Quantos destes tidos como hiperativos ou bipolares
não estariam mais bem tratados até sem nenhuma pílula, se fossem apenas bem escutados?
Todavia os dogmatismos e ortodoxias não existem apenas na
psiquiatria DSM ou na medicina em geral. As depressões e demais quadros
ansioso-depressivos tem importância particular também quando deixam de
receber tratamentos medicamentosos adequados, justificados por dogmatismos e
ortodoxias vindas de pacientes e terapeutas.
De naturalistas extremados (“não tomo químicos”) a antigos
psicanalistas que não querem “escamotear” sintomas, passando por esotéricos que
se pretendem terapeutas e pacientes escaldados por maus tratamentos médicos
(deprimidos crônicos tratados com calmantes e/ou sub-doses de antigos
tricíclicos), o psiquiatra bem intencionado encontra por vezes dificuldades em
medicar.
Dificuldades de primeira grandeza, à medida que medicar
é conseguir que um deprimido clássico siga por ao menos 6-12 meses o único
tratamento que isoladamente é capaz de mudar radicalmente seu prognóstico (e a
perspectiva de vida) imediatos, inclusive alavancando
e possibilitando outras medidas terapêuticas (psicoterapia, mudanças de estilo
de vida, outros tratamentos médicos, etc.) que em associação, podem mudar o
prognóstico a longo prazo.
Mas não basta ter um arsenal farmacológico mais poderoso. Se
a substância química não se torna um pharmakon, sem a arte médica que
vem se perdendo na prática clínica atual, não existe a melhora que a modulação
dos neurotransmissores promete. Se não há sujeito que se reconhece em seus
limites, morte, escolhas e finitudes, ou é um dopar que não dura mais que a
paixão do alívio ou o sofrimento faz fundo e logo figura feio. Se não há
sujeito...a voz do antigo filósofo tem seus valores invertidos: “tudo o que
humano me é estranho”.
O diálogo, o encontro eu - tu de M. Buber, o tempo mínimo
para que se dê tal encontro que possa evoluir para uma relação médico –
paciente, tudo isto está na contramão do espírito neoliberal das companhias de
seguros, visando aumentar a "produtividade" médica e assim seus
lucros.
O ato médico, quando planificado por burocratas da saúde,
gera protocolos e trajetos sem rostos reais. Seu complemento sine qua non na medicina publicitária
são sorrisos, famílias felizes, claras ou étnicas e sempre bem vestidas da AMIL
ou Bradesco Saúde. Também o médico, mesmo no exercício liberal, pode tornar-se
publicitário em causa própria, como já o fazem alguns cientistas e acadêmicos.
Não que o médico não deva aumentar sua produtividade, criar
e seguir criticamente protocolos ou divulgar o seu trabalho, o que está em
questão é o lugar primordial do bem-estar do paciente. Tal questão ética fundamental,
que define "o que objetiva o médico?" Questão que deve amalgamar-se à
metodologia científica e diagnóstica que define "o que investiga o
médico?", bem como no conhecimento, p. ex,. farmacológico que norteia suas
prescrições; “como e quanto destas drogas?”.
Mas é só ao paciente que é facultado o real poder de seguir
(ou em que grau seguir) a prescrição do médico, livre que é para decidir.
"O real efeito do tratamento corresponde ao prognóstico?" constitui a
última e imprescindível questão, constitui a dimensão ancestral do ato médico,
tão esquecida nos dias de hoje, derivada em última análise do encontro humano
que acolhe, explica e usa da retórica racional e amorosa nos seus melhores
sentidos para convencer a pessoa (que uma vez convencida torna-se
"paciente") do acerto do proceder do médico, discutindo-se idealmente
ponto a ponto do ato médico e tendo como conseqüência uma evolução clínica
favorável.
O melhor efeito do médico se produz quando se instala uma
aliança de propósitos, também chamada aliança
terapêutica, entre médico e paciente. Assim este segue à risca a prescrição
explicada e não só imposta em um receituário, faz os exames que por vezes são
desagradáveis e tomam tempo, pondera junto com o médico como agir em face de
efeitos adversos, chegando a mudar hábitos de uma vida toda (p. ex., ser
excessivamente sedentário ou não se implicar como sujeito em nada).
Tradicionalmente, o trabalho do médico é lançar mão de todo
recurso eticamente válido para curar, atenuar ou melhorar sintomas e incapacitações
e combater a dor e aflição física e psíquica. Há séculos o tratamento lança mão
de tudo que for mais confiável, seguro e ético; pode ser cirúrgico ou clínico,
pode ser fisioterápico, pode valer-se de próteses, pode ser também da “alma”,
como enfim o é todo bom tratamento médico, ainda que marginalmente.
Assim, o médico torna-se psicoterapeuta para melhor tratar a
pessoa que o procura, avaliando e também tratando da ignorância do diagnóstico
e da conduta médica dele decorrente, dos receios, fantasias, masoquismos e
ganhos secundários das pessoas sofrendo, pessoas que a relação inicial
médico-cliente torna pacientes.
Bom tratamento é aquele que é efetivamente seguido
pelo paciente, aquele em que a partir do encontro clínico que passa a ser uma
relação médico – paciente, inicie-se uma relação de confiança. Assim o médico
possa ser também psicoterapeuta em uma singular transferência positiva,
levemente idealizada emanando de um suposto saber, porém em benefício do
paciente.
Da parte do médico, empatia humana, respeito, tempo
suficiente, retórica entre paternal e autonomista, o suposto saber a serviço de
uma aliança terapêutica. Aliança que faz com que a pessoa sofrendo passe
a endossar a conduta do médico, seguindo suas prescrições à medida em a retórica
do médico muda crenças prévias. A pessoa então se dispõe, de livre vontade e
autonomia, a agir de acordo com que o médico estima ser a conduta mais adequada
para o caso. Passa seguir as prescrições do tratamento, adequa suas ações
(seguir o tratamento) a uma crença nova ou modificada (cf. Peirce CIT) como
resultado da retórica do médico.
Cada consulta de um médico de qualquer especialidade deve
ideal e normativamente reviver este processo. A especificidade dos distúrbios
psicológico-psiquiátricos requer considerações adicionais. O tratamento atual
destes últimos, além de medidas gerais (diagnóstico e tratamento da saúde
geral, aspectos de nutrição, atividade física, modificações de estilos de vida,
redução de estressores conscientes, etc.) lança mão basicamente de terapêuticas
medicamentosas e/ou psicoterápicas.
Meta-análises estatísticas extensivas convergem e tendem a
mostrar que para a maioria dos distúrbios psicológico-psiquiátricos,
tratamentos associando medicamentos e psicoterapia são claramente mais eficazes
que o tratamento apenas com medicamentos ou com psicoterapia. Este argumento
tem sido bastante citado, não obstante as difíceis questões que imediatamente
emergem.
(1) Quais farmacoterapias e psicoterapias, com que
dispositivos, formas de avaliação, em que tempo? (2) Quando só indicar um ou outro tratamento, quando (ou
melhor, quanto) acrescentar psicoterapia ao tratamento inicial médico, quando o
psicoterapeuta (que muitas vezes não é médico) deve pensar em solicitar uma
avaliação médica, que conseqüências isto tem para a psicoterapia em curso e
para o bem estar do paciente?
São questões que ficam esboçadas no fim deste trabalho.
Muito trabalho... Os paciente e a tipicidade de seus quadros clínicos atuais
varia enormemente. Os sistemas nosográficos e as psicopatologias são por vezes
excludentes e contraditórias. A base biológica do psiquismo é incontestável,
mas a subjetividade que de bebês nos faz humanos mais ou menos adultos tem que
ser contemplada na terapêutica, bem como a mediação cultural em mutação
acelerada. Os medicamentos surgem com apelos e velocidades elevadas. As
informações ditas científicas são cada vez mais tendenciosas. As práticas de
atendimento de meus pares variam muito mais que em qualquer outra
especialidade. Como agir?
“A vida é curta, a arte é longa, a ocasião fugidia, o
julgamento difícil. É preciso não somente fazer o que convém, mas ainda fazer
com que o doente, os assistentes e as coisas exteriores contribuam para tanto”
(Hipócrates 2002: 50).
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