Minha foto
São Paulo, SP, Brazil
O autor é médico (Faculdade de Medicina da USP, FMUSP), especializado em Psiquiatria (H. das Clínicas da FMUSP), doutor em Filosofia (EHESS, Paris) com pós-doutorado em Ciências Cognitivas (PUC-SP). Clinica em consultório particular desde 1993.

sábado, 2 de junho de 2012

Precisamos do DSM-5?


Precisamos do DSM-5?

Depois de termos percorrido toda uma tradição em Psiquiatria, de Pinel  ao séc. XXI – tradição que lidou com sujeitos humanos com sentimento de si e singularidades significativas, existindo em reações, estresses, processos psicóticos, neuroses e perversões - chegamos em 2013 ao admirável mundo da psiquiatria sem sujeito, do Manual Estatístico e Diagnóstico, versão 5.

O DSM-5 insere-se na moderna Psiquiatria do cérebro-mente - que se pretende ateórica a respeito da mente, estatístico-científica, cognitivo-comportamental  - enquanto nosografia descritiva que prescindiria de uma teoria do psiquismo ou de um sujeito humano e corporal a ser ouvido e visto em quanto tal.

Questiona-se todavia se esta Psiquiatria efetivamente ajuda no sofrimento dos pacientes, se ela poderia potencializar o melhor das antigas práticas de bases humanistas e filosóficas que prevaleceram até os anos 70-80 (fenomenologia, psicopatologia, psicanálise, existencialismo, além das abordagens corporais e psicossomáticas).

O desafio ao psiquiatra atual é a meu ver mesclar o legado obtido desde o Iluminismo, aonde nasce a Psiquiatria enquanto parte da Medicina (de base filosófica e empírica), até o melhor que se possa destilar do modelo atual cérebro-mente (de base neurocientífica).

Para tal desafio, contamos hoje com a poderosa e inédita potencialidade do aparato técnico e farmacológico do séc. XXI, disponível para diagnóstico e tratamento (p. ex. ressonâncias, PET-scans, estimuladores magnéticos, neurolépticos e antidepressivos modernos). Tal aparato não teria sua efetividade potencializada, se inserido numa compreensão humanista e corporal do sujeito que vai sendo desprezada na Psiquiatria no estilo DSM?




DSM ou CID?

 Carlos Rey, depondo a Sara Hassan sobre o manifesto StopDSM (ver em stopdsm.blogspot.com) do qual é signatário, inicia dizendo que a idéia principal é  “manifestar a nossa discordância com que o DSM seja o único critério de diagnose clínica: Denunciamos que, oficialmente, é necessário recorrer a uma classificação que nem é como se supõe, científica, mas política” (Rey & Hassan 2012: 2).

Penso que algum Código Internacional de Doenças é necessário, uma versão muito aperfeiçoada do atual CID-10 ou 11 (editados pela Organização Mundial da Saúde, OMS). “Classificação política”, sim, mas de políticas de saúde pública. Necessária à pesquisa clínica, sobretudo em psicofarmacologia, aos sistemas de financiamento e gestão da saúde e à comunicação internacional.

Um “CID futuro” ideal, gerado através de amplo debate transcultural, por exemplo sob os auspícios da OMS forte, deveria transcender as limitações do DSM e superá-lo no uso corrente mundo afora, influenciando as políticas de saúde pública e enfim visando o melhor atendimento ao maior numero possível.

Um CID futuro ideal poderia também ser tributário de um debate wikipédico entre os pesquisadores de sua força-tarefa mundial e a diversidade mundial dos clínicos da saúde mental. Citaria e traria correspondências com outras pesquisas, nosologias, escalas de sintomas, DSMs locais, com descrições do sofrer mental provenientes de línguas e culturas diversas, inclusive não ocidentais, buscando aliviar ou tratar os sofreres que, enfim, temos todos em comum.

Podemos assim sonhar com o CID futuro, que além de seu braço classificatório, possa também documentar as bibliotecas abertas de diálogos com as psicopatologias e nosologias contemporâneas, fenomenológicas, existenciais, psicanalíticas, psicodinâmicas, bioenergéticas, para não falar de medicinas chinesas ou indianas ou de mesmo de culturas que mal temos conhecimento, numa grande síntese antropo-psicopatológica em evolução, que assuma a necessária teorização subjacente às nosografias, convergindo todavia para um consenso classificatório final, ainda que sempre provisório, em forma de código internacional.

     
Mondo DSM...

Já o DSM-5, com seus “transtornos” multiplicando-se por métodos lobistas através de seus pesquisadores opacos (mas com acesso às publicações indexadas e aos financiamentos), mostra o pior do atual provincianismo americano, dos interesses mercantis, das escolinhas comportamentais toscas, dos vieses de uma míope pretensão a um só modo de viver a ciência e a clínica.

Estamos no mondo dos grandes congressos de psiquiatria, de siglas como APA, FDA, da exclusividade terapêutica atribuída a terapias cognitivo-comportamentais, com o pano de fundo do modelo “científico” e supostamente unificado da disfunção cerebral omnicausal e com localizações cerebrais já quase elucidadas.

Neste mondo, o Manual Estatístico e Diagnóstico americano, prestes a chegar à sua versão 5, já se tornou uma respeitável criatura intelectual de cabelos grisalhos, com projeção mundial sobretudo em farmacologia clínica; orgulhosamente gerada em alguns dos 50 estados americanos, mas de pretensão universal. Realidade: muito da pesquisa global em Psiquiatria norteia-se pelas categorias diagnósticas do DSM-4.

Se em 1952, com o DSM-II, a Psicanálise se fazia saliente em termos  tais como histeria ou neurose e em conceitos-chave tais como conflito intra-psíquico, hoje toda referência desapareceu. Duramente criticado nos anos 60-70, o DSM-II “representaria a realização institucional referendada pelo Estado e articulada aos seus dispositivos educacionais, jurídicos e de pesquisa para repressão política” (Dunker & Neto, 2011: 614). De fato: além do elo histeria-feminilidade combatido pelas feministas, somente em 1974 a homossexualidade deixou enfim de ser uma patologia catalogada, após muitos protestos.

Em 1980 surge o DSM-III, que pode ser considerado o momento de virada na Psiquiatria; cansada das querelas das ciências humanas e dos debates políticos, ela mudou completamente: ela é agora biológica, neurocientífica, supostamente já sem teorias psíquicas ou sócio-culturais subjacentes, acreditando enfim dispor, de uma vez por todas, de um “sistema de diagnóstico preciso do ponto de vista descritivo-terminológico e passível de servir de apoio para pesquisa empírico-experimental” (Dunker & Neto, 2011: 616).

Nos dias de hoje, nos corredores dos laboratórios farmacêuticos  e universitários, os psiquiatras que são a força-tarefa do DSM-5 caminham ombro a ombro com estatísticos, estagiários, zootecnistas de modelos animais, lobistas, ghost-writers, gente de eventos e financiadores, corredores onde Freud ou Jaspers já são ilustres desconhecidos.

Como parte de um credo único que agora despreza o passado, o DSM chega aos ambulatórios e consultórios modernos na forma de transtornos agora  catalogáveis e recriáveis a partir de prontuários, alimentados por questionários estandardizados e tabuláveis em pontos e escalas. Como que por coincidência, os psiquiatras americanos ficam assim resguardados dos processos de má-prática típicos do país, graças à documentação e a “evidência” que é gerada neste estilo de clínica.

Fechando o círculo, o enorme marketing da brain-pharma assegura o contato dos clínicos com os novos produtos, que geram prescrições de medicamentos caros com vieses óbvios contra o bem estar do paciente, que passou agora a ser bipolar ou hiperativo... quinze vezes mais que em 1980? Ou ser portador de novos transtornos de impulsos ou tiques recém-elencados, além de múltiplas “co-morbidades”? Muitas mais pessoas precisam de muitos mais tratamentos...

Anedota ou não, a julgar pela leitura feita por auditores das proposições do Comitê para a Proposição de Novos Transtornos do DSM-5, boa parte da população teria um novo diagnóstico DSM-5, de transtorno hiper-sexual se pensasse ou fizesse sexo algo como mais de 6 horas por semana, e hipo-sexual com menos de uma hora por quinzena.

Tanto quanto os críticos do óbvio conflito de interesses nas pesquisas de psicofarmacologia clínica patrocinados pela indústria farmacêutica, o movimento StopDSM  tem plena razão em criticar o mal uso, uso reificado e/ou perverso da Estatística e enfatizar a dimensão verdadeiramente clínica do diagnóstico em Psiquiatria, que diz respeito à singularidade de um sujeito humano. O que quer dizer afinal ser portador de transtorno hipo ou hiperssexual? Seria pertinente iniciar imediatamente Viagra ou Broxol XR?


CID futuro ideal

Apesar da hegemonia atual desta psiquiatria no estilo DSM-5 e seu entorno neo-liberal em crise, acredito que precisamos de um Código Internacional de Doenças (CID) futuro. Contra Carlos Rey, mas sem desqualificar práticas clínicas da singularidade, como a psicanálise ou análise existencial, acredito que também necessitamos de critérios estatísticos, epidemiológicos e um estilo científico de pesquisar que não pode prescindir, ao menos na dimensão da saúde pública, de uma necessária unificação descritiva e de uniformização de nomenclaturas, tais como as de um CID ou DSM.

Mesmo como instrumento de um aspecto pouco relevante da clínica de sujeitos singulares num vínculo médico-paciente, aquele da relação do profissional com sistemas de saúde públicos ou privados, ter um código internacional para relatar cada atendimento tornou-se realidade incontornável no modelo de assistência praticado no mundo ocidental.

Já a indicação de medicamentos psiquiátricos, ainda que limitada pela prática atual de tratamento de sintomas ou síndromes - como benzodiazepínicos para sintomas ansiosos ou antidepressivos para síndromes depressivas - deveria ser idealmente norteada por uma psicopatologia respondendo por categorias nosográficas mais cada vez mais precisas, consensuais, uniformes e delimitadas, tais como as de um CID futuro.

Todavia, hoje muitas indicações farmacoterápicas já são feitas em função de diagnósticos DSM-IV questionáveis que a meu ver não beneficiam o paciente, sancionando por exemplo a hiperinflação de bipolaridades tratadas com anticonvulsivantes ou hiperatividades tratadas com anfetaminas caras.

Não obstante, toda a pesquisa clínica com psicofármacos depende de uma nosografia estabelecida, por exemplo para se comparar diferentes fármacos em função de sua  indicação para categorias diagnósticas claramente delimitadas (p. ex. lítio e anticonvulsivantes no leque clínico das bipolaridades do humor), bem como para comparar o espectro de ações de um fármaco em diferentes categorias diagnósticas (p. ex. espectro de ação de antidepressivos e neurolépticos atípicos).

Assim, questiona-se também se o recorte de efetividade de certos fármacos não possa delimitar grandes categorias sindrômicas e diagnósticas (p. ex., determinados perfis clínicos ansiosos e depressivos altamente responsivos a tais ou tais antidepressivos, que possivelmente partilham circuitarias neuronais e neurotransmissores em comum).

.Também a pesquisa das bases neurocientíficas da Psiquiatria depende de uma boa nosografia, com o estabelecimento de correlações entre alterações microanatômicas-funcionais, respostas farmacológicas e alterações psíquicas específicas.

Até mesmo a delicada pesquisa de eficácia de psicoterapias depende de como entendemos e nomeamos, ao longo do tempo, o que é o sofrer e o fruir humanos. Mas para definir “eficácia” de uma psicoterapia precisamos  além das nosografias, recorrer à psicopatologia e mesmo à filosofia, notáveis ausentes na formação do psiquiatra atual no modelo DSM. Que critérios estatísticos definiriam o que é afinal uma psicoterapia eficaz?


Diagnóstico e prognose além do CID

Sara Hassan, lendo meus argumentos sobre a necessidade de um sistema nosográfico e classificatório, comentou que mesmo dispondo-se de um CID ideal existe o risco de hipertrofia deste modelo diagnóstico classificatório, segregando ou diluindo outros enfoques, tais como a psicanálise.

Do meu lado, refleti que tal comentário entra em sintonia com a tese que emergiu a partir da minha reflexão sobre o DSM-5, a saber, que paralelamente a um diagnóstico ao estilo CID se possam formular diagnósticos da singularidade, evolutivos, dependentes de observação e elaboração concomitantes e continuadas, no seio de um vínculo, como é proposto pela psicanálise e pelas psicoterapias que contemplam um sujeito singular.

No contexto de um atendimento psiquiátrico mínimo, envolvendo apenas farmacoterapia e pouco tempo junto ao paciente - como é regra na saúde gerenciada, pública ou privada - diagnósticos da singularidade nem sempre são factíveis e o tratamento consiste apenas no seguimento de um protocolo que tem como premissa um código CID. Mesmo diagnósticos do eixo II do sistema DSM (de personalidade), ou do eixo IV (contextos psicossociais), não tem como ser realizados com rigor quando o atendimento é mínimo, em tempo e em vinculação terapêutica.

Em condições mais favoráveis de tratamento, quando se pode efetivamente estabelecer um vínculo terapêutico e dialogar com o paciente ao longo de muitas sessões, diagnósticos da singularidade são possíveis e desejáveis, implicando em tratamentos mais efetivos.

Isto é o que busco na minha clínica, que conjuga farmacoterapia, orientações sobre modus vivendi adequados e psicoterapia. Além de um diagnóstico psiquiátrico convencional, como os códigos CID, procuro estabelecer diagnósticos da singularidade do paciente, que particularizam e assim dão maior eficácia às medidas de tratamento, farmacológicas, psicoterápicas, além da ênfase às orientações gerais para promoção da saúde.

Estes diagnósticos da singularidade - psicodinâmicos, do grau de resiliência, da capacidade de enfrentamento (coping) e do bom funcionamento egóico, da estrutura e funcionamento cognitivo, emocional, familiar e vincular, do sistema de crenças sócio-culturais, dos sentidos dados à própria existência presente e passada – são de certo modo semelhantes aos critérios diagnósticos “clínicos” descrito por Carlos Rey no contexto psicanalítico:

 “Clínica é a observação, estudo, análise do paciente, da sua história e do seu relato (...) como tem vivido sua vida, (...) sua experiência”. Obtém-se assim junto e com o paciente um saber clínico, um prognose, “...fruto da transferência, do trabalho conjunto, da elaboração do paciente, da escuta do profissional” (Rey & Hassan 2012:4).

Todavia, os critérios “clínicos” de Rey tem a especificidade da clínica psicanalítica, enquanto meu conceito de diagnósticos da singularidade tem outro foco, mais egóico e que se faz no vínculo médico-paciente e psicoterápico, abarcando dimensões que incluem diagnósticos médicos gerais, da história e cultura familiar, sócio-culturais, da personalidade, dos recursos lógicos, emocionais e atitudinais e das capacidades de mudança e  insight.

Não obstante, o diagnóstico amplo que proponho abarca e coincide - no benefício do paciente que teria assim melhor tratamento – com a posição de Rey: “nós, os psicanalistas, reivindicamos a subjetividade e portanto a diversidade de maneira de ser e de estar no mundo, de sentir, de pensar, definitivamente de viver, curtir e sofrer” (Rey & Hassan 2012:3).
 
A busca de uma compreensão do paciente em sua singularidade visa enfim ter por conseqüência  em uma conduta médica ideal, isto é para a proposição de um mix de medidas e regimes de tratamento adequados àquele paciente singular, no antigo espírito da medicina hipocrática; “a ação curativa dependerá de um triplo ‘que’, que doença, que doente, que remédio” (Carvalho 2004: 58).


Ressonâncias com o Manifesto de Barcelona e M. Foucault

Assim como os signatários do Manifesto de Barcelona, documento-referência do movimento “StopDSM - como critério único de diagnose clínica” (veja em stopdsm.blogspot.com.br), também sou contra as “certezas clínicas” dadas por “gestores e investidores dos sistemas de saúde”, que começam com a razoável idéia de mínima normatividade necessária, mas logo se tornam certezas cínicas, verdade única, modelo coercitivo onde “tudo é para o paciente, sem o paciente”. Seria porque um “saber sem sujeito é desde logo um poder sobre o sujeito”?  (Manifesto de Barcelona, 2011).

Reencontramos assim no DSM-5, sob o disfarce de cientificismo ideologicamente neutro, o biopoder postulado por M. Foucault em versão contemporânea, o mesmo biopoder exercido desde fins do séc. XVIII sobre os “processos biológicos ou bio-sociológicos das massas humanas”.

 Reencontramos o biopoder potencial da Medicina, “saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população, sobre o organismo e sobre os processos biológicos e que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos regulamentadores” (Foucault 2005: 302).

Assim, se precisamos minimamente de códigos de doenças e protocolos diretivos de tratamento, que saibamos como e a quem atendem e a quem deveriam atender, pois tanto como os proponentes do Manifesto de Barcelona, “não consideramos que as classificações e tratamentos possam ser neutros em relação às teorias etiológicas e ao mesmo tempo ser neutros a respeito das ideologias de controle social e de interesses que não são clínicos”.

Ora, desde Hipócrates, o interesse central do praticante da clínica é o paciente. Daí a meu ver a discordância de tantos profissionais da saúde mental com o DSM enquanto “critério único de diagnose” e a insistência na pluralidade dos diagnósticos clínicos em psiquiatria, na preservação da tradição da psicopatologia e da ética médica.   


Ressonâncias com o manifesto de Buenos Aires

O Manifesto de Buenos Aires originou-se de debates em torno da patologização da infância e da juventude, em 2011. Significativamente, este outro manifesto-referência do movimento StopDSM enfatiza os riscos do etiquetamento precoce e das estigmatizações potenciais conseqüentes a diagnósticos no estilo DSM, correlata à ausência de compreensão de um jovem singular em sofrimento psíquico, nos seus contextos vinculares, familiares e sociais.

Citando este manifesto (ver em “stopdsm.blogspot.com.br”), enfatizo que: “um Manual como o DSM (...) que não leva em conta a história, nem os fatores desencadeantes ou o que subjaz a um comportamento, obtura as possibilidades de pensar e de se interrogar sobre o que ocorre a um ser humano”.

Com isto “se solapam as determinações intra- e intersubjetivas do sofrimento psíquico” e, como novamente observamos, se compromete “a realização de um tratamento adequado a cada paciente” (grifo meu).

No mesmo golpe, acrescentaria ainda, se pode penalizar com um conjunto de transtornos-rótulos quase todo o jovem que em algum momento evolutivo apresentar um comportamento que se julga destoar da norma disciplinar; temos aí um biopoder de enorme potencial autoritário.


Ressonâncias com o Manifesto de S. João del Rey

Neste manifesto conjunto de instituições universitárias brasileiras (ver stopdsm.blogspot.com.br), faz-se uma detida crítica do DSM-5 a partir de sua fundamentação epistemológica frouxa e de seus vieses políticos, econômicos e doutrinários, que culminam simultaneamente no alijamento de toda a tradição em psicopatologia e na “patologização da existência”, como também assinalado nos manifestos de Barcelona e Buenos Aires.

Cito: “Os promotores dos DSM’s confundem quantificação (estatística) com inteligibilidade científica”; isto a ponto de, como lemos no manifesto, um psiquiatra americano ter em 1984 decretado, ao estilo de F. Fukuyama, o fim da história da Psiquiatria, pois o DSM “teria vencido a batalha científica em relação aos outros sistemas e teorias diagnósticas e psiquiátricas”.

A “vitória” nesta batalha pode todavia não representar (alívio...) o fim da história da Psicopatologia, agora feita tabula rasa, mas é infeliz e patente que a hegemonia da visão de mundo DSM “acaba por impedir que se faça uma discussão séria sobre o que é o normal e o patológico”.

Se esta vitória é ou não de uma aliança entre os partidários da etiologia puramente biológica, os interesses mercantis e um dissimulado biopoder que se apodera do sofrimento psíquico, o resultado é um manual que cataloga fenômenos psíquicos  “sem preocupação em saber como surgem, porque surgem, como se articulam entre si e, principalmente que função podem desempenhar para determinado sujeito”.

 Inúmeras conseqüências derivam disto. Reitero apenas que a pretensão a uma Psiquiatria sem referência a um “sujeito e sua singularidade sintomática” só pode resultar em tratamentos piores aos pacientes reais, com seu foco em abolir sintomas inventariados, que seriam expressões de meras disfunções cerebrais e não de complexas formações simbólicas no contexto de uma existência humana.


Enquanto isto na América...

Nos EUA, exceto por grupos minoritários, sobretudo de psicólogos (ver p. ex. http://www.ipetitions.com/petition/dsm5) e críticos culturais ao estilo europeu, o tom médio das discussões sobre o DSM-5 não é de questionamento às fundações epistemológicas, clínicas e psicopatológicas dos manuais estatísticos - como vimos acima - mas apenas de convocação a revisões e reformas, sobretudo em definições de transtornos com óbvios exageros e vieses.

Assim, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo em fevereiro de 2012, A. Frances - o relator-chefe do DSM-IV em 2000 e hoje um dos críticos mais ouvidos sobre o DSM-5 (Frances 2012a) - faz pertinentes críticas ao DSM-5, enfatizando seus elos com a indústria farmacêutica e com pesquisadores opacos ultra-especializados e distanciados da clínica com pessoas reais.

Já em maio de 2012 o mesmo Frances comemora a retirada de alguns dos transtornos propostos mais controversos do DSM-5, tais como “risco de psicose”, ou “depressão em período de luto”, mas mantém afinal o que parece ser o espírito de mero reformismo do texto. Veja “Wonderful News: DSM-5 Finally Begins Its Belated and Necessary Retreat “ (Frances 2012). Confira o próprio site da força-tarefa do DSM, da American Psychiatric Association, APA, em www.dsm5.org.

De modo geral, parece que entre os psiquiatras americanos acredita-se nas “evidências” facultando o uso generalizado e acrítico do DSM e em uma gradual auto-correção da confiabilidade e cientificidade das futuras revisões do manual, sem questionamentos como os propostos pelo StopDSM.

Assim, contra este DSM-5 volto a contrapor um CID futuro com um restrito braço classificatório colocado em seus limites utilitários (epidemiológicos, administrativos, de pesquisa); sem apequenar a clínica em prejuízo dos pacientes, sem menosprezar a tradição psicopatológica, considerando detidamente os múltiplos efeitos políticos de uma nosografia onipresente, afinal em benefício ou não das pessoas em sofrimento psíquico.
  

A volta do venerável problema cérebro/mente: a proposta do interacionismo psicofísico

Nestes últimos parágrafos, postulando que uma nosografia deve dialogar com alguma teoria psicopatológica e que esta deve ser enfim tributária de uma teoria da mente e do psíquico, esboçarei algumas conseqüências da assunção de um interacionismo psicofísico de mão dupla na explicação da origem de sintomas em psiquiatria, tanto contra o estilo DSM (disfunção biológica) quanto contra a causação estritamente psíquica e simbólica (exclusivamente conflitos intra e extrapsíquicos).

Vimos que se no espírito do DSM, listas de sintomas são “expressões de meras disfunções cerebrais e não de complexas formações simbólicas no contexto de uma existência humana”, seria supostamente possível desconsiderar o incontornável problema dos elos entre cérebro, mente e psiquismo, objeto das Ciências Cognitivas. Conceitos como “formações simbólicas”, “representações mentais investidas de afeto” ou qualquer arcabouço de teoria psíquica seriam assim desnecessários para a Psiquiatria?

Do mesmo modo se podem desconsiderar os eventos cerebrais, cada vez mais documentados, ao se pensar o sofrimento  psíquico somente em termos do complexo simbolismo afetivo humano. Assim, C. Rey, reivindicando o justo lugar para a subjetividade quer “a psique como sinônimo de ‘mental’, não de ‘cerebral’ (...)...reivindicamos a causalidade psíquica nos conflitos, problemas e sofrimento psíquico” (Rey & Hassan 2012: 3).

Ora, a meu ver as assertivas acima não são incompatíveis entre si e com o que as Ciências Cognitivas nos permitem afirmar, desde que não haja a pretensão de ser ateórico como nos DSMs e que se assuma alguma posição quanto ao venerável problema filosófico das relações entre o corpo/cérebro e a mente/psíquico. A meu ver, não há só causalidade psíquica; genética e acúmulo de proteínas anormais também estão implicados no sofrimento psíquico. Seria uma questão de proporção em cada caso clínico real.

Assumir um interacionismo psicofísico, além do mero paralelismo psicofísico, permite imaginar um vice e versa da causalidade, tanto do físico sobre o psíquico (p. ex. doença de Alzheimer, biológica, e suas repercussões vivenciais), quanto do psíquico sobre o físico (caso das conversões histéricas, doenças psicossomáticas e das doenças auto-imunes em algum grau).

De modo mais realista, há que se assumir uma interação complexa e em proporções continuamente variáveis entre “nature” e “nurture”, p. ex. entre repetição gerando hábito (princípio das redes neurais) e hábito gerando repetição (masoquismo, compulsividades). Mais ainda, podemos imaginar causações genéticas, ambientais, neurodegenerativas, psicodinâmicas e sócio-culturais retroalimentando-se mutuamente, de modo a criar estas singularidades imprevisíveis que são os sujeitos humanos.

Deste modo, é possível conceber correspondências entre causações biológicas e psíquico-culturais em Psiquiatria e postular respostas para  “o problema da universalidade das formas do patológico” enfocado pelas psicopatologias (Dunker & Neto 2011:617), fazendo-as derivar do imbricamento complexo entre causações biológicas, psíquicas e culturais.

Ficariam assim no mesmo plano “a universalidade biológica das modalidades do patológico baseada em perturbações genéticas, endócrinas, neuroquímicas, anatômicas” e “o que há de universal entre ou nas culturas, por exemplo, estruturas familiares, funções de personalidade, gramáticas simbólicas”.

Do mesmo modo, equaciona-se o problema “da evolução do patológico”, tanto na história das culturas (p. ex., a dramática passagem das conversões observadas por Charcot às anorexias e bulimias atuais, no contexto das histerias descritas pela Psicanálise) como no sujeito singular (p. ex. o embate de forças no ego tomado por disfunções cognitivas ou por alucinações e delírios que caracterizam a psicose crônica com e sem tratamento; lembramos aqui o famoso Caso Schreber analisado por Freud).

Para Dunker & Neto (2011) estes dois difíceis problemas, da universalidade e da evolução das patologias mentais, devem ser respondidos por qualquer Psicopatologia que aspire servir de base à Psiquiatria. Infelizmente são reflexões dos quais a weltanschauung ao estilo DSM e das linhas organicistas mais filosoficamente tacanhas nos afastam cada vez mais.


Referências

Colluci, C. & Garcia, R. (2012) Novo manual de diagnóstico provoca guerra na psiquiatria, Folha de São Paulo de 05/02/12, capturado em 26/05/12 em http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/1043956

Carvalho, C. C. (2004) Do poder das palavras às palavras do poder, Revista Portuguesa de Psicossomática vol. 6, nº 1 (55-62).

Dunker, C. & Neto, F. (2011) A crítica psicanalítica do DSM-IV – breve história do casamento psicopatológico entre psicanálise e psiquiatria. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. 14, pags. 611-626.

Foucault, M. (2005) Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.

Frances, A. (2012) Wonderful News: DSM-5 Finally Begins Its Belated and Necessary Retreat, Psychiatric Times, capturado em 26/05/12 em http://www.psychiatrictimes.com/blog/frances

Frances, A. (2012a) Propostas de mudança no manual da psiquiatria são ‘inconseqüentes’, diz especialista, Folha de São Paulo de 05/02/12, capturado em 26/05/12 em http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/1043918

Manifesto de Barcelona, capturado em 7 maio de 2012, em http://www.stopdsm.blogspot.com.br .

Manifesto de Buenos Aires, capturado em 7 maio de 2012, em http://www.stopdsm.blogspot.com.br.

Manifesto de S. J. Del Rey, capturado em 7 maio de 2012, em http://www.stopdsm.blogspot.com.br.

Rey, C. & Hassan, S. (2012) Por uma psicopatologia clínica não estatística; sobre o manifesto stopDSM, Carlos Rey entrevistado por Sara Hassan (pags. 1-5). 

www.dsm5.org., site oficial da força-tarefa do DSM-5, capturado em 12 maio 2012.
Open Letter to DSM-5, em http://www.ipetitions.com/petition/dsm5,  no site oficial da American Psychological Association, capturado em 1 junho 2012.

Nenhum comentário:

Postar um comentário