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São Paulo, SP, Brazil
O autor é médico (Faculdade de Medicina da USP, FMUSP), especializado em Psiquiatria (H. das Clínicas da FMUSP), doutor em Filosofia (EHESS, Paris) com pós-doutorado em Ciências Cognitivas (PUC-SP). Clinica em consultório particular desde 1993.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

a vida dos antidepressivos

A vida dos antidepressivos




Breno Serson







Resumo: Neste artigo busca-se contrastar o adequado emprego clínico e ético dos antidepressivos com seu uso na atualidade (seu marketing e seu uso como produto pós-moderno). A pluralidade dos discursos sobre os antidepressivos, por exemplo o dos médicos, pesquisadores e pacientes, é assim esboçada, refletindo o impacto destas substâncias sobre as subjetividades contemporâneas.

Unitermos: antidepressivos, marketing, ética, subjetividades



Summary: This paper contrasts ethical and adequate clinical use of antidepressants with their actual use within contemporary marketing-oriented scene, as a post-modern product. The plurality of discourses about antidepressant drugs is then outlined, e. g. practicioneers’, researchers’ or patients’ discourses - reflecting the impact of these substances on contemporary subjectivities.

Key words: antidepressants, marketing, ethics, subjectivities



Resumen: Se busca en este trabajo contrastar el empleo de antidepresivos (su marketing, y empleo como producto post-moderno) con su utilizacíon clínica y ética. La pluralidad de los discursos sobre los antidepresivos es esbozada – por exemplo, de médicos, pesquisadores y pacientes - reflejando el impacto de estas substancias sobre las subjetividades contemporáneas.

Unitermos: antidepresivos, marketing, ética, subjetividades.




No espírito de Orson Wells, “all is true” a respeito dos discursos sobre antidepressivos.

Pílulas do bem estar ou da felicidade; de uso excessivo, leviano ou questionável; impostos pela indústria farmacêutica a médicos e potenciais pacientes a golpes de lobismo e marketing e vendidas como drogas seguras apesar do potencial de riscos, sobretudo em mãos inexperientes.

Os antidepressivos prevalentes dos anos 90 já dão indícios midiáticos de fade out agora em 2008, quando coincidentemente caducam suas patentes (Turner 2008, Turner et alli 2008, Kirscher 2008, Laurance 2008). Novos diagnósticos e transtornos (mais bipolaridades e DDAs) e assim tratamentos (anticonvulsivantes, neurolépticos atípicos) são propostos.

Não obstante, os antidepressivos modernos são medicamentos extremamente úteis em uma vasta gama de quadros ansiosos, depressivos e de somatizações, levando a descronificações e melhoras notáveis.

Isto se observa sobretudo no contexto de tratamentos integrando psicoterapia e outras medidas gerais terapêuticas enquanto mudanças salutares de regimes de vida (como constato em mais de 15 anos de prática clínica em consultório).

Por outro lado, como drogas psicotrópicas em geral, os antidepressivos exibem riscos complexos, particularmente quando usadas em jovens; podem efetivamente ser indutores de suicídio, de viradas maníacas, de efeitos adversos e interações farmacológicas importantes. Com a banalização das prescrições fora de contextos razoáveis de diagnóstico e tratamento, o uso dos antidepressivos chega a ser contraproducente e até perigoso.


Numa visão sociológica sombria, os antidepressivos acabam sendo meios de sedação e/ou remotivação para o “deserto do real” da vida pós-moderna (cf. Bauman 1998, Zizek 2003), meios que chegariam ao limite ético da droga soma (cf. crítica do Brave New World de A. Huxley, em Schermer 2007).

Seriam os antidepressivos quase drogadicção institucionalizada, prescrita e egossintônica com a sociedade de consumo de massas? Na França, campeã de consumo, quase um adulto em dez faz uso de antidepressivos, o resto do mundo exibindo taxas um pouco mais baixas.

Os antidepressivos suscitam assim uma ampla gama de reações na sociedade que vai do “tomo antidepressivo, graças a Deus” (Moraes, 2008), até as comunidades anti-antidepressivos (por exemplo, www.prozacbacklash.com, www.antipsychiatry.org). Assim, e por tudo que será discutido abaixo, “all is true”.

Com estes panos de fundo, este artigo propõe-se a discutir criticamente breves aspectos da questão:

- quando, quanto e como os antidepressivos são usados na prática contemporânea (como mercadoria e fetiche; sociomercadologia).

- quando, quanto e como deveriam ser usados (uso correto como medicamento; clínica e ética).

Em ambos os enfoques, busca-se refletir sobre as conseqüências destes usos nas vidas reais, usos plurivalentes, no contexto das subjetividades contemporâneas.


Histórias dos antidepressivos modernos

Muitas pessoas hoje buscam ativamente o psiquiatra prescritor de fármacos, o novo médico psicofarmacologista, como acolchoador ou blindador farmacológico do sofrimento psíquico, tanto quanto temiam o psiquiatra antigo, perscrutador de inconscientes e/ou alienista juiz da loucura, maestro de internações e dopamentos daqueles infelizes tornados “estranhos no ninho”.

Esta é uma mudança que começa nos anos 1950, quando a medicação psiquiátrica se faz enfim eficiente, ainda em um tempo de discursos psiquiátricos em torno da psicopatologia fenomenológica e psicanalítica.

A partir dos anos 80, configura-se uma reviravolta ainda maior nas práticas, pressupostos e discursos da psiquiatria. A um tempo em que os antidepressivos passam a ser medicamentos muito mais seguros e assim usados em pacientes não internados e naqueles menos graves, nos discursos psiquiátricos ganha hegemonia o estilo biologicista e aquele dos manuais estatístico-diagnósticos (DSMs).

Há desde então uma particular ambição de tornar a psiquiatria um ramo clínico da neurociência e da genética aplicadas, capítulo de uma medicina “baseada em evidências” e capaz de dar feed-back casuístico às abordagens atuais nestas áreas, quantificáveis, reprodutíveis e anti-psicologizantes.

Isto se faz paralelamente ao esvaziamento do vínculo médico-paciente eu-tu (cf. M. Buber), vínculo que visava à compreensão e elaboração de sofreres humanos, mas se faz também paralelamente à inflação de discursos e práticas em torno de inventários de sintomas e de psicoterapias protocolares, em modelos cognitivo-comportamentais.


Acredito que um dos móveis destas transformações deve-se ao advento dos antidepressivos modernos: um marco é o lançamento do Prozac, em 1988.

Mais de 20 outros compostos antidepressivos surgiram desde então, quimicamente muito diversos, mas tendo bastante em comum, em eficácia e resposta clínica global, em imprevisibilidade a priori no balanços entre efeitos terapêuticos e adversos naquela pessoa, no mecanismo de ação (fundamentalmente sobre neurotransmissores) e, sobretudo, nas implicações de seu uso para a vida contemporânea.

Falamos das substâncias psicotrópicas que mais impactaram a sociedade nos anos recentes, “...conheço tantos que tomam”, novos campeões de lucros da indústria farmacêutica em suas florescentes brain divisions. Dos novos produtos que precisamos, como very smart phones, aparatos de segurança ou cirurgias estéticas.

Antidepressivos modernos são produtos farmacêuticos hoje entre os dez-mais-vendidos globais. Seu marketing não enfatiza tratar apenas sintomas (como febre, dor, insônia) ou doenças prevalentes na população (como diabetes, hipertensão arterial ou depressão clássica), mas implicitamente enfoca angústias, tristeza, desmotivações, mal-estar, quedas de produtividade e até falta de “alegria” (cf. análise da publicidade dirigida a médicos, “sertralina X, alegria da forma mais pura“ em Bolguese 2004: 118-123)

Muitas destas “indicações” heterodoxas aos padrões tradicionais da clínica médica situam-se na dificílima fronteira ética entre o medicamento para a doença e o novo produto integrante de um estilo de vida pós-moderno (espécies novas de tônico para produtividade, suplemento para stress, “mother’s litttle helper”, cf. Jagger-Richards 1966).

Sem embargo, o uso dos antidepressivos na vida contemporânea, desde o estilo do marketing envolvido até a sutileza dos efeitos nas subjetividades, vai além da indicação convencional de medicamentos.

P. Kramer (1995), “ouvindo o Prozac”, como intitulou seu livro, identificou a correção farmacológica de pautas histéricas (hipersensibilidades a rejeições), de faltas de assertividade, de excessos de compulsividades, além de aumentos de possibilidades terapêuticas para o trabalho psicoterápico em geral.

O antidepressivo seria em geral favorável ao tratamento psicoterápico? Este controverso ponto toca particularmente os psicanalistas e psicoterapeutas, afetados pelo fármaco de diversos modos, a começar pelas complexas transferências e contra-transferências suscitadas por mudanças nas angústias do viver e do repetir-se dos pacientes.

Seja como for, os efeitos dos antidepressivos modernos ultrapassam em muito a mera redução da ansiedade, via neurotransmissão GABA-érgica, obtida pelas ‘pílulas da felicidade’ dos anos 60, os ansiolíticos como Lexotan e Valium (embora em um curioso estudo, que não reencontrei a citação, populações de periferias violentas preferiam os ansiolíticos acima mencionados ao Prozac, este massivamente preferido nos bairros ricos).

Considerando-se a história da medicina, os clínicos observam hoje padrões de efeitos enérgicos e inéditos dos antidepressivos sobre graves fobias, pânicos, ansiedades tônicas e somatizadas, incapacitações obsessivo-compulsivas, quadros dolorosos crônicos, “fibromialgias”, somatizações e TPMs, além das depressões propriamente ditas.

Dadas estas múltiplas indicações e em nome da clareza sobre o modo de ação, têm sido proposta a substituição do nome “antidepressivo” por agente com ação sobre a neurotransmissão, p. ex. serotoninérgica (ISRS), ou serotonino-noradrenérgica (IRSN), agente com ação farmacológica sobre síndromes psiquiátricas “do espectro ansioso-depressivo”, bem como sobre sintomas dolorosos e sintomas integrantes de quadros psicossomáticos (vertigens, faltas de ar, dispepsias, diarréias) e outros.

A plasticidade dos efeitos subjetivos e objetiváveis dos antidepressivos, como relatada pelos pacientes, é surpreendente. Devem ser consideradas as cessações de crises de pânico, os aumentos de tolerância em situações fóbicas, as reduções de irritabilidades, a melhora de pontuações em escalas de depressão e ansiedade, mas também sutis aplainamentos e indiferenças afetivas, a mudança íntima e inequívoca para um estar-no-mundo menos ameaçador. Afinal, como um fármaco que visivelmente não “droga” e que não é abusado como droga traficada, faz ver a vida de outro modo?


Alguns pacientes mais cool e culturalmente contemporâneos encontram nos antidepressivos a droga sintônica com seus estados de alma, algo como láudano ou absinto para os românticos ou cannabis e LSD para os hippies. Uma base farmacológica cool e talvez mais dissimulada, quando comparada à dos antigos, para estar neste mundo. Até porque os antidepressivos comportam em muitos casos o uso concomitante com outras drogas psicotrópicas, proscritas, prescritas ou não.

O padrão atual de uso dos antidepressivos atinge fronteiras inusitadas como o uso normalizador pós-moderno para acolchoar afetos e paixões humanas vividas como intoleráveis (lutos, separações, renúncias) ou simplesmente desagradáveis para o sujeito contemporâneo, falando-se até em uso “cosmético” (cf. o debate filosófico nada trivial sobre o tema, p. ex., em Cerullo 2006, Healy 2000 e Kramer 2000).

Com efeito, um antidepressivo pode compensar parcialmente os abusos de drogas hedonistas (álcool, cocaína) ou estresses cotidianos e lifestyles pouco saudáveis (sedentarismo, horas de tráfego e filas, junkie-food, shoppings pervasivos, vida virtual, espelhamentos fornecidos por estilos da publicidade, contatos humanos “eu-isto” e meramente utilitários, narcisismos na linha Caras e BBB, imbecilização de tablóides e TV dominical, alienação espiritual, científica, comunitária ou religiosa, o trabalho excessivo, o vago e líquido descaso e\ou vácuo existencial versão séc. XXI.

Com ou sem intenção, o uso dos antidepressivos pode alternativamente dopar, aplainar ou tornar indiferentes as angústias contemporâneas, rapidamente lipoaspirar as gorduras do peso existencial ou mesmo turbinar uma produtividade ou positividade sem arrefecimentos.

Chega-se a propor hipernormalizar as imperfeições desmotivantes ou angustiosas das superfícies e peles psíquicas do indivíduo tido como normal, tornando-o assim cosmeticamente mais bem apessoado psiquicamente e portanto feliz (ou seria mais saudável? Empático? Mais apto e adaptado?; cf. Gentil 2007).

Isto talvez equivalha, em um homem ou mulher, ambos tidos como normais para a idade, a indicar o uso de “suplementos” tais como hormônio de crescimento (GH), hormônio masculino (andrógenos) ou hormônio tireoidiano (“TRIAC”) a fim de obter um ótimo emagrecimento e/ou um desempenho atlético e sexual premium, embalando-se uma sensação de bem estar superior (cf. o teste destes dopamentos “esportivos” em Stevens 2005).

Não por acaso, não está na moda sonhar em mudar o mundo (..que saco...), matarmo-nos como jovens werthers ou guerrilheiros guevaras ateus, drogarmo-nos como baudelaires cristão-culpados. Salvos dois ou três bares mitômanos e decaídos, não discursarmos com paixões políticas e poéticas entre cafés e cigarros existencialistas; exceto aos tolos consumindo o mais ofertado às massas, os enganados, faltam as vivências de tais paixões.

Entender o inferno e mal-estar da nossa cultura do narcisismo (cf. C. Lasch), implicarmo-nos como sujeitos em nossas escolhas e limitações - como proposto pela psicanálise ou pelas terapias existenciais - soa hoje, para a maioria jovem das raves globais e àqueles limitados de qualquer idade, como a valsa e o cursinho de noivado da virgem, em vestido branco.


Discursos e controvérsias da psiquiatria hegemônica

Que a medicina, incluindo sua especialidade de saúde mental, a psiquiatria, deva ser baseada em evidências, é quase auto-evidente. Basear-se em evidências científicas, estatísticas e dados transculturais globalmente validados é o mínimo de universalismo e validação necessária à psiquiatria dos anos 2000.

Não obstante, há muito a ser criticado nos discursos prevalentes. Posições “esquerdóides” contrárias à psiquiatria anglo-americana nos modelos DSM, exagerando críticas pertinentes, desconsideram o avanço aportado à pesquisa e à clínica por tais modelos, graças a um esforço que resultou em maior uniformidade conceitual e efetividade pragmática até mesmo na prática clínica diária (cf. Katunda & Doutel 2001).

Buscando ir além dos maniqueísmos, como é sempre razoável na crítica das idéias, há que se chegar a uma síntese dialética, usando o que tem de melhor a medicina moderna e a psiquiatria DSM – p. ex. escalas de sintomas, critérios operacionais, validações estatísticas, consensos de tratamento - paralela e simultaneamente a tudo que o antigo viés psicológico e humanista da psiquiatria pode ainda hoje proporcionar em benefício do paciente.

Superando assim “escolas” dogmáticas e uma multiplicidade de velhos estilos personalistas de diagnosticar e tratar, os consensos e guidelines são assim bem-vindos, à medida que idealmente inibem miopias de indivíduos, modas ou pressões que não sejam em benefício do paciente. Falamos em interesses pessoais, comerciais, lobísticos ou de grupos acadêmicos, em suma, de poder em geral.

Assim, consenso não significa que a clínica deva se tornar um técnica de processamento de dados, forçando as condutas da vida real a mimetizar fluxogramas compulsórios e estandardizados de poucos casos possíveis.

Tal técnica configuraria o acme orgástico dos burocratas da saúde dos managed cares do varejo, que o clínico deve rigorosamente enquadrar e colocar no seu limitado lugar ao tratar o seu paciente, a pessoa singular sofrendo.

Como efeito colateral bem-vindo, guidelines oficiais com a devida abertura para avanços diagnósticos e terapêuticos combatem a soberba do biopoder médico, pessoal, empresarial ou corporativo, à medida que os consensos se tornam agora públicos e acessíveis. Vide por exemplo o Google para checar o seu diagnóstico e tratamento atual; todavia a democratização da informação embute inevitavelmente uma multiplicação de discursos de todas as tendências, uma hiperinflação onde parece não haver centro e it´s all true.

Além das espirais da internet, diante dos discursos oficiais, it´s all true, devemos guardar o olhar histórico e crítico; o quanto o estilo DSM-IV-R e o viés das pesquisas que estabeleceram consensos não validam como “o melhor da ciência” o que seriam apenas posturas de uma psiquiatria datada e moldada por miopias, interesses, modismos e dogmatismos que, como sempre, logo caducarão.

Ler sobre o que hoje se diz “definitivo”, como p. ex. terapia cognitivo-comportamental, não será tão risível como ler sobre etiopatogenia, diagnósticos e tratamentos de 30 ou 50 anos atrás, algo como ler sobre psicastenia, sonoterapia, barbitúricos?

Guidelines e metanálises via MEDLINE têm assim seu papel, mas não são, todavia, oráculos infalíveis em cada caso individual. A clínica psiquiátrica de resultados (ou seja, de evidência de melhoras e de melhoras evidentes), será sempre antiga, ars medica, experiência dialógica, envolvimento humano, vínculo de cura proposto através do singular afeto beneficente que une o médico a seu paciente (cf. O conceito de pharmakon em Serson 2008a).

Além de informada e formatada pela melhor ciência médica, a psiquiatria deveria conservar a meu ver, mais que outras especialidades médicas, o viés de ars medica, a busca da compreensão do que é nature & nurture, da cultura e da civilização, além de qualquer biologia cerebral possível, do tudo que é prá-lá de complexo ao nos tornarmos propriamente humanos, existencial, psicológica e pathós-logicamente.

Voltando à mercadologia dos antidepressivos: os discursos prevalentes da indústria farmacêutica e da psiquiatria acadêmica, no molde norte-americano, pouco contradizem e talvez mesmo francamente estimulam as contínuas propostas de ampliação comercial do uso de antidepressivos (e também de anticonvulsivantes, neurolépticos e psicoestimulantes).

Não nos iludamos; há pouca preocupação com o real bem estar do paciente atrás do biombo das indicações “técnicas” ou “científicas” invocadas em publicidades institucionais, “nosso foco é o seu bem-estar”, justificadas por aparências hipócritas e manipuláveis de pontuações em escalas de sintomas, por pesquisas com mega-vieses de interesses, ainda que fundadas em designs e estatísticas formalmente inatacáveis e em acríticos e em onipresentes diagnósticos DSM.

Isto torna-se evidente nos medicamentos aprovados ou não segundo o Federal Drug Administration (FDA), com bases por vezes exclusivas em estudos patrocinados por seus fabricantes. Assim, contrariando a realidade da clínica, de uma classe de fármacos equivalentes na prática clínica só este ou aquele são aprovados para tal e tal indicação, em tais doses (p. ex., por que não se aprova o sulpiride, excelente e consagrada droga, para ao menos uma indicação?).

Medicamentos fitoterápicos e mesmo hormônios tornam-se “suplementos alimentares” de venda livre, apesar do seu uso comportar riscos clínicos. Medicamentos bem testados e utilizados (por exemplo o hipérico ou a valeriana na Europa) não ganham aprovação do FDA como medicamentos, ficando à margem do discurso psiquiátrico oficial.

Com a expiração das patentes e o conseqüente fim das altas lucratividades dos antidepressivos dos anos 80-90, o big pharma e seus elos acadêmicos, lobísticos, e de pesquisa/ publicações/citações, já fomenta a necessidade de tratar novas condições psiquiátricas recentemente “identificadas”, ou ampliadas (‘elarged’), tais como ”transtornos bipolares” (prescrever anticonvulsivantes estabilizadores de humor), “DDA em adultos” (prescrever psicoestimulantes).

Isto equivale, na clínica geral às hiperlipemias, osteopenias ou intolerâncias à glicose antes não valorizadas, supostos déficits eréteis que precisariam do seu neo-viagra ou quedas hormonais antes fisiológicas que precisariam ser corrigidas (propagandeia-se atualmente uma “menopausa” masculina, bem agora que se dispõe de testosterona que não precisa ser injetada).

Três hurras para nova era do disease mongering, da criação interdisciplinar, global e multicêntrica de novas condições clínicas feitas sob medida para novos e antigos medicamentos que possam gerar lucro ou reduções de custos em “gerenciamento” de saúde (cf. PloS Medicine 2006).




Uso correto – ético, como medicamento – dos antidepressivos.


Quando usados no tratamento de quadros do espectro ansioso-depressivo descrito acima, os antidepressivos - associados ou não a outros fármacos psicotrópicos - devem ser prescritos por psiquiatras ou generalistas com experiência, no contexto de tratamento integrando orientações psicopedagógicas (as medidas gerais, cf. acima) e sempre que possível, psicoterapia (como consensualmente aceito).

Tal prescrição ideal abarca um seguimento contínuo, de semanal a bimestral, por períodos de vários meses a um ou dois anos, dependendo da apresentação ansioso-depressiva de cada caso e suas variáveis.

Todavia, a maioria das receitas de antidepressivos (talvez 80%), como aconteceu com os calmantes “tarja preta” desde os anos 60, não se insere no contexto acima, mas é uma amostra grátis dada pela ginecologista por achar a paciente estressada, ou uma prescrição sem anamnese psiquiátrica ou seguimento, do último lançamento do mercado, casualmente lido em uma propaganda na revista de cardiologia. Em doses erradas, sem monitoramento, sem orientação médica devida.

É curioso, mas pouquíssimos psiquiatras prescreveriam anticoncepcionais ou anti-hipertensivos, mesmo conhecendo a farmacologia e formas comerciais de hormônios femininos ou a dos anti-hipertensivos (p. ex., prescrever Yasmin ou Lasix 40 mg, um comprimido pela manhã). Simples bom senso médico: seria necessária experiência no manejo destas situações clínicas, bem como o exame ginecológico daquela mulher ou investigação da etiopatogenia daquele homem com pressão arterial 18 por 12.

Não obstante, o médico generalista pode prescrever antidepressivos, dada a importância da relação médico-paciente na melhor evolução dos quadros ansioso-depressivos e à boa margem de segurança dos fármacos atuais.

Assim, é melhor o médico de família que conhece bem o paciente conduzir um tratamento com antidepressivos, em casos menos graves, do que o psiquiatra apressado e desinteressado do “convênio” e/ou aquele que só faz diagnósticos baseado em lista de sintomas e só prescreve seguindo o fluxograma do “guideline” traduzido do Inglês.

Já o psiquiatra ideal utiliza antidepressivos em um tratamento integrado - psicoterapêutico e psicopedagógico – e obtém melhoras vigorosas inclusive em pacientes psicossomáticos encaminhados por outros especialistas, por exemplo, em situações de dores e queixas gastrointestinais, infecções de repetição, sintomas vertiginosos e quedas de memória, fraquezas, em faltas de ar asmáticas e não asmáticas.

O psiquiatra pode ser assim o melhor médico para aquele paciente que já percorreu vários colegas e que já recebeu diagnósticos e tratamentos questionáveis, tais como “fibromialgia”, “labirintite”, envelhecimento inevitável ou “estresse”.

Inversamente, indicações não psiquiátricas do uso de antidepressivos - como certas enxaquecas em neurologia, dor lombar ou cervical crônica em fisiatria, ejaculação precoce em urologia, quadros do tipo “TPM” em ginecologia – podem prescindir do psiquiatra, embora em alguns destes casos o componente ansioso e/ou depressivo deva merecer uma abordagem específica.

Antidepressivos devem ser prescritos após cuidadosa avaliação diagnóstica multifatorial (diagnóstico psiquiátrico, clínico-geral, de personalidade, de uso de substâncias, de risco suicida, etc.).

Como não se sabe a priori que paciente responde a que tratamento, além das diretrizes pertinentes de escolha, devem ser considerados efeitos terapêuticos e colaterais em tratamentos anteriores do paciente e familiares, co-morbidades, sintomas proeminentes (p. ex. insônia, queixas dolorosas), perfil global (p. ex. sobrepeso, cardiopatia, tendência a obstipação intestinal, repertório cultural do paciente, ignorante ou culto, uso adictivo de medicação, outros medicamentos ou substâncias em uso, etc.)

Nas indicações psiquiátricas, o tratamento com antidepressivos compreende 3 fases, introdução, manutenção e retirada. Escolhido um fármaco, este deve ser iniciado em doses em geral abaixo da dose diária média, lentamente elevadas ao patamar necessário ao melhor balanço efeito terapêutico vs. risco ou efeitos colaterais. Pode ser necessário substituí-lo ou complementá-lo por outros fármacos com critério e monitoramento constante (fase de introdução).

Nesta fase de introdução de antidepressivos, dada a latência de resposta inicial dos fármacos (1-3 semanas) e da resposta plena (pode ser de meses), agentes sintomáticos, tais como calmantes “tarja preta”, soníferos ou outros podem ser necessários. Idealmente os sintomáticos devem mantidos pelo mínimo tempo possível.

Assim os antidepressivos convencionais como Prozac, Wellbutrin, Zoloft, Remeron ou Aropax, podem efetivamente ajudar pessoas, integrando medidas psicoterápicas e outras, e em doses cautelosamente elevadas ou diminuídas por meses ou anos. Devem ser também considerados estressores psicossociais e timings de cada caso; tudo isto requer monitoramento contínuo uma relação médico-paciente cuidadosamente elaborada.

Fora destes contextos, os antidepressivos podem ser prejudiciais ou pouco efetivos. Veja a publicidade médica “fluoxetina X, prescreva O bem estar ao seu paciente, dose única 20 mg desde o início”. Quem não gostaria dO bem estar, em apenas uma única receita de rápido preenchimento?



Referências

Schermer, M. H. N. (2007) Brave New World versus Island – Utopian and Dystopian Views on Psychopharmacology. Medicine, Health and Philosophy 10: 119-128 (Springer Verlag 2007).

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